quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

3428) A Vida e os Tempos de Mauricinho Caô (21.2.2014)



Cap. 1 – De como Mauricinho Caô nasceu de 7 meses em berço de ouro, e foi criado como príncipe-de-gales até os 7 anos, na mansão de seu pai, dono de uma indústria de semáforos, em Vila Mariana.  

Cap. 2 – De como as incompetências governamentais e a condição de capitalismo periférico em um país subdesenvolvido (segundo o pai dele) conduziram a família à ruína, ao desespero, e a uma casa de um só andar e apenas quatro quartos em Vila Madalena.  

Cap. 3 – De como a “nova vida, mais realista” (segundo a mãe dele) teve influência direta no cardápio, no mobiliário e no figurino de todos da família, menos no de Mauricinho, que, sendo o caçula, continuou sendo tratado a pão-de-ló pelos pais e pelas três irmãs mais velhas e eternamente solteiras. 

Cap. 4 – De como o destino dele foi determinado quando conheceu seu primeiro motel aos 22 anos, ao lado da filha de um deputado, que tinha 38 e era mais fatal do que um Smith & Wesson. 

Cap. 5 – De como Mauricinho esteve à altura desse combate e nos anos seguintes não fez outra coisa senão voltar a travá-lo, com socialites de variada estirpe, até virar assessor em Brasília com belo salário, verba de representação e ajuda-de-custo/moradia.  

Cap. 6 – De como alguém teve a infeliz idéia de conseguir para Mauricinho uma vaga de assessor diplomático de embaixada, logo onde, no Afeganistão. 

Cap. 7 – Dos primeiros doze meses que Mauricinho passou naquele inferno de sol, poeira e novas experiências olfativas.  

Cap. 8 – De como Mauricinho foi raptado sem querer por extremistas talibãs , que nada queriam com ele, queriam apenas a van em cujo portamalas ele se escondeu  ao começar o tiroteio durante a travessia do deserto de Kalamashiri.  

Cap. 9 – De como, descoberto, Mauricinho pediu pelo amor de Alá que não o matassem, e jurou fé no Alcorão com tamanho fervor que os hirsutos e maltrapilhos guerrilheiros se entreolharam, se comoveram, e o cobriram de beijos de solidariedade islâmica.

Cap. 10 – De como a chegada de Mauricinho coincidiu com uma complicada conjunção lunar e sideral que prometia algo como um messias (segundo algumas versões) ou farta colheita de papoulas (segundo outras).  

Cap. 11 – De como Mauricinho deixou a barba crescer, visitou Meca, aprendeu a usar armamento pesado, impressionou os talibãs com seu conhecimento de Geografia, reuniu um exército de dez mil homens e invadiu o Paquistão, onde foi fragorosamente derrotado, conduzido a Guantánamo, interrogado, e, sabe Deus como, perdoado no ato, condecorado pelo presidente Obama, e retornou ao Brasil como representante de uma firma de escuta eletrônica sediada, logo onde, em Vila Mariana.


3427) Autores meticulosos (20.2.2014)




(manuscrito de Kafka)

Li na adolescência uma frase de Kafka que volta e meia recordo. Era mais ou menos assim: “Escrever é trabalhoso.  Quando consigo colocar uma palavra no papel, não tenho senão esta, e tudo recomeça.”  

Para autores assim, como o próprio Kafka, Raymond Chandler, Georges Perec, escrever é como levantar um muro. Tem que fabricar um tijolo. Colocá-lo no lugar. Depois fabricar o tijolo seguinte. E por aí vai.  

É o contrário da impressão que eu tenho de certos autores (Nelson Rodrigues, Henry Miller, Jack Kerouac, Chesterton, Walter Gibson que escrevia a série The Shadow) para os quais escrever é sinônimo de abrir uma torneira: já está tudo pronto para ser escrito, o único trabalho é controlar o fluxo.

De um lado da rua, moram os autores meticulosos cuja escrita é um avanço penoso mas seguro, onde a cada dia de trabalho são produzidas algumas linhas, mas pelo menos se supõe que serão definitivas. 

Na calçada oposta moram os autores fluentes, caudalosos, que redigem dezenas de páginas num dia de atividade veloz e ininterrupta. Estes – descontando-se, sempre, os que visam apenas a quantidade sem qualidade – parecem ter um mecanismo automático de escolha que faz sua prosa fluir sem maiores considerações caso-a-caso. Quase como se, tendo descoberto uma maneira original, espontânea e variada de dizer o que pretendem, eles já a tivessem automatizado a ponto de produzi-la sempre que necessário, sem muita reflexão.

Robert Silverberg (autor de Uma pequena morte, Crônicas de Majipoor) conta que teve duas fases distintas em sua carreira. Na primeira foi de uma produtividade recorde: 

“Eu escrevia com espantosa rapidez, vendendo quinze histórias em junho de 1956, vinte no mês seguinte, catorze (incluindo uma serialização em três partes) no outro mês.”  

Tempos depois, ele dizia: “Tornei-me como os outros mortais, e tenho que redigir duas, ou três, ou às vezes dez versões de cada página antes de poder fazer a datilografia final.”

Silverberg foi promovido da energia perdulária da pulp fiction para a contractividade criadora da arte. Tornou-se um artista mais denso e mais complexo,  para os que acham que quanto mais cerebral mais artístico – questão ainda em aberto. 

A autoconsciência do autor que recebe o upgrade de uma pulp fiction para uma New Wave paga o preço de uma teorização filosófica para cada frase. Por que este plano e não outro?, perguntava Jean-Luc Godard, brechtianamente, estancando o fluxo do delírio e mandando os diretores pensarem. Por que esta palavra? pergunta Kafka. 

E depois de longas assembléias com seus heterônimos ele concorda que a palavra é mesmo aquela. Escreve-a no papel. E tudo recomeça.