quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

3391) A Biblioteca Perdida (9.1.2014)




(by André Govia)

A cidade de Gesternburg é conhecida por sua catedral gótica, pela exuberância de suas floriculturas, pelos seus restaurantes (para os que apreciam a comida alemã) e pela Biblioteca Wolffring, uma das maiores coleções de obras ocultistas e místicas da Europa. Gesternburg é um porto fluvial, e o ápice de sua vida cultural foi entre os séculos 16 e 17, quando seu clima ameno e a facilidade de transporte fez muitos nobres do império austro-húngaro construir ali seus castelos de verão. A decadência das casas nobres fez com que as maiores absorvessem as menores, e o que aconteceu com os brasões se refletiu nas bibliotecas. Por volta de 1887, o Conde de Wolffring havia comprado todas as bibliotecas do vale.

A morte do Conde em 1914 coincidiu com o deflagrar da I Guerra Mundial. A cidade, miraculosamente, não sofreu nenhuma invasão, mas padeceu com o racionamento de comida. E foi aí que entrou na história o novo Conde, filho único do patriarca. Estrôina, beberrão, indolente, o jovem Conde começou a dilapidar a fortuna do pai, que morrera sem um centavo nos cofres. Como achava que mobília e pratarias tinham maior valor, começou a desfazer-se dos livros. Os fornecedores de pão, carne, vinhos, leite, vitualhas, passaram a ser pagos não com moedas, mas com pesados volumes de Eliphas Levi, de Swedenborg, de Fulcanelli... Os perplexos mercadores passavam esses livros adiante por qualquer preço. A cidade inteira tinha uma vaga idéia de que o Conde possuía volumes preciosos, e durante alguns anos livros passaram de mãos em mãos num complicado sistema espontâneo de escambo, onde contavam pontos o tamanho do volume, o número de páginas, as ilustrações ou iluminuras que exibia, a encadernação.

Desse modo, ao longo de dez ou quinze anos as estantes do castelo de Wolffring foram esvaziadas, enquanto pela cidade inteira espalhavam-se tesouros bibliográficos obscuros ou interditos. Pesquisadores do mundo inteiro costumam hoje hospedar-se em Gesternburg por longos períodos para consultar a Biblioteca Perdida. Para isso, tornam-se amigos de padeiros, encanadores, taxistas, camponeses, manicures, em cujas casas sempre é possível encontrar cofres de madeira bem cuidados onde se guardam exemplares da moeda local: a correspondência de Papus, primeiras edições de Blavatsky e de Valentin Andreae, manuscritos inéditos de Jacob Boehme e de Jan van Ruysbroeck. É possível consultá-los e até fotografá-los, se se recorrer aos serviços profissionais da pessoa sob cuja custódia estão. Este é um fato que tem contribuído para aumentar o fluxo do turismo cultural em Gesternburg neste último meio século. Quanto ao castelo do Conde, foi comido por um incêndio.