Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 27 de janeiro de 2013
3094) A Larica (27.1.2013)
(ilustração de Gustave Doré para Pantagruel, de Rabelais)
A Larica é uma entidade que se apossa – por meios ainda não reconhecidos pela ciência convencional – do corpo desprevenido de um ser humano, e passa a dominá-lo, em seu próprio e parasítico proveito, sempre que ele o permite. O principal sintoma de um indivíduo possuído pela Larica é uma fome inegociável. Se a mesa estiver vazia, o sujeito é capaz de roer a toalha.
Por que tem este nome? Ninguém sabe. Ouvi uma explicação dando conta de que em Cuba, ao que parece, existe uma expressão popular dizendo que: “En la vida del boémio existe la madrugada pobre, y existe la rica”. Não sei se as palavras são exatamente estas, mas La Rica passou a ser um sinônimo daquelas madrugadas insones em que uma mente doentiamente ativa fica impulsionando um corpo a noite inteira de um lado para o outro de um apartamento, fazendo-o esbarrar nos móveis, perder o rumo e ir parar na cozinha quando visava o banheiro, mas de qualquer maneira já que este lugar onde ao que parece eu estou agora é a cozinha, então deve haver uma geladeira, muito bem, eis geladeira. Tudo confere. O que tem dentro deste tupperware? Bora esquentar, e quando comer a gente descobre.
A Larica funciona assim. Ela é uma entidade pouco nítida para mim que, agnosticamente, não dou a mínima para orixás ou elementais terrestres ou consciências semióticas. Só sei que funciona. O sabor do que se come em Larica é sagrado. Não venham me dizer que a coquilha-de-são-jaques é mais saborosa do que o macarrão-parafuso-com-carne-moída trazido de volta à vida neste instante, mediante ficção científica, cibernética, microondas e pensamento positivo.
Um pão de anteontem redunda na mais saborosa torrada que já chiou num grill. Há maravilhas inexploradas, toda uma fractal de sutilezas possíveis no mix entre o purê de batatas e o arroz. As frutas, então, são um universo à parte. Basta pensar na pletora de líquidos em que uma fruta pode ser mergulhada com proveito gastronômico e chegaremos a números galácticos. Não subestime as bolachas; qualquer substância achatada posta entre duas delas tem, por milagre estrutural, seu sabor enriquecido.
A Larica nos leva de volta à essência sagrada do ato da alimentação, tão banalizado pelos comerciantes de secos-e-molhados e tão aristocratizado pelos gurmês. Só sobreviveremos se destruirmos alguma coisa. Precisamos tirar de algum lugar a energia que nos mantém em movimento. Se um bicho come, ele está interagindo com o Universo num dos seus níveis mais primais, onde a frivolidade não tem vez. O bicho consome energia do Universo. O Universo a fornece, de olho nele. Está contabilizando. Um dia, vai pedir de volta. Algum problema?