(Salvador Dali, O anjo caído)
Eu nunca vi um anjo e nunca vi um átomo, mas, por alguma
razão profunda, duvido “de graça” da existência do anjo e acredito “de graça”
na existência do átomo.
A primeira proposição precisa ser qualificada para não gerar
mal entendidos. Jamais duvido da existência do anjo como um produto da nossa
cultura, um personagem, uma criatura composta de lendas e imagens. Um anjo
existe tanto quanto um elfo, um vampiro, um saci. São personagens da cultura,
têm sua função, ajudam a focalizar emoções, servem de símbolo, servem de
comparação, ajudam a contar parábolas e histórias...
Enfim, são personagens que
se tornaram indispensáveis na nossa cultura, pelo menos a ocidental e cristã,
pois não sei se os chineses, os ianomâmis ou os aborígines da Austrália têm
criaturas equivalentes.
Já o átomo, comparado com o anjo, é uma coisa muito sem
graça. Quando eu era menino ele era representado como um aglomerado de bolinhas
de cores diferentes (o núcleo) rodeado, em órbitas, por outras bolinhas menores
(os elétrons). Nunca deixou de me inquietar a noção de que “a menor partícula
da matéria” podia ser dividida em partículas ainda menores. Essa contradição
filosófica nunca me escapou.
Em todo caso, um átomo não é feito de miçangas, e
sim de vibrações localizadas de energia que se atraem e repelem, e que ao longo
de bilhões de anos foram se combinando em padrões estáveis (os elementos químicos).
Por que motivo acredito no que acabei de escrever aí em
cima? Eu nunca vi um átomo. Vi fotos com microscópio eletrônico, mostrando
espaços negros pontilhados por manchinhas luminosas. Uma coisa inconvincente;
eu próprio, se me dessem um bom software de animação, seria capaz de produzir
átomos muito mais verossímeis.
Os átomos são feitos de 99,9% de vazio e 0,1% de
energia. E no entanto eu acredito que eles existem, sim, e que são mais ou
menos como a Ciência os descreve. (É a própria Ciência que me adverte a colocar
esse “mais ou menos”.)
Se a gente não gosta da Narrativa, nem as provas mais arrasadoras são
capazes de nos fazer mudar de opinião.
Se a Narrativa é convincente, as provas
são mera ilustração.
A Narrativa religiosa do anjo não me convence (o Anjo como
entidade espiritual); a Narrativa científica do átomo, sim. Desde a infância a
gente vai examinando as Narrativas que recebe (da família, da escola, dos
amigos, dos livros), vai se afastando de umas e se filiando a outras. E passa a
viver no mundo dessa Narrativa. Eu vivo num mundo onde, se Anjos existem, são
feitos de átomos.