(foto: "Paris, 1924", Henri Manuel)
"O mundo era uma festa, uma noite estrelada, o terraço de uma cobertura aberta para o oceano, a avenida da praia percorrida por pares de faróis em trânsito incessante, os edifícios com janelas iluminadas e terraços onde pessoas dançavam, gritavam rindo para nós, erguiam o copo numa saudação alegre à distância, sem nem saber que éramos.
"Nós mesmos não sabíamos
quem éramos, e isso não tinha importância; a vida era uma coisa tão boa que nos
poupava de ser bons, era tão acelerada que nos poupava da menor iniciativa. Erguíamos os braços com as taças se
derramando, ouviam-se gritinhos femininos de prazer, e nos saudávamos como se
toda noite fosse uma festa de reveillon, como se no futuro alguém fosse ler em
todas as lápides: “Eles viveram como se toda noite fosse um reveillon”.
"Isso éramos nós, na pedra, no mármore e no
bronze. A vida era uma comemoração do mero fato de haver a vida. Uma celebração abstrata, um brinde e um beijo
a toda e qualquer coisa, fosse um aniversário, um casamento, uma vitória, um
festejo em comum. Os seres humanos do nosso mundo não perguntavam o antigo “quem somos, de onde viemos e para
onde vamos”. Perguntavam: Como foi a
festa de ontem? Como vamos nos preparar para a festa de hoje? Alguém sabe onde tem festa amanhã?
"Vivíamos erguendo os copos, arremessando
serpentinas do nosso balcão ao balcão do sobrado em frente, vendo a rua
fervilhar de dançarinos, o mundo era uma festa, e estávamos celebrando. As águas subiam, e estávamos celebrando. As
luzes falhavam, a comida acabava, a bebida estava quente, mas tudo era motivo
para novos risos, novos gracejos, e celebração.
"Onde havia uma avenida era
agora correnteza; passavam boiando reses, carros, pessoas. Tudo era espetáculo
para nossos comentários espirituosos, nossas apostas repentinas, nossos
brindes. Entrava noite e saía noite,
nascia manhã e findava tarde, e íamos de lancha ao clube para onde antes íamos
de carro, e onde os salões superiores estavam sempre apinhados de multidão e
música, mesmo que lá embaixo a piscina estivesse submersa no lamaçal. Subiam
colunas de fumaça, e apostávamos se o vento as empurraria para o nascente ou o
poente. Prédios ardiam, e alguém murmurava um verso sobre “a beleza ancestral
do fogo”. As tropas chacinavam multidões
famintas e tudo parecia um videogame. Da
vida só entendíamos o que ela tinha de festa, e é no espírito de festa que
hoje, entre as ruínas, tomamos a sopa rude dos desabrigados que nos acolheram
em seus barracos, e brindamos, com estes canecos enferrujados e esta cachaça
impura, ao mundo que deixou de existir."