(Sarolta Ban)
Uma
obra literária consta basicamente de enredo e estilo. A história que é contada
e as palavras escolhidas para contar essa história. (Sim, sei que tem muito
mais coisas, mas bora em frente.) Tem gente boa de enredo e que escreve apenas
mais-ou-menos, e tem gente que escreve super bem mas só imagina histórias
banais. A grande e a pequena literatura estão cheias de exemplos.
Essa
divisão de tarefas mentais explica, parcialmente, a existência de grandes
tradutores. Tem gente que diz que o tradutor é um escritor frustrado. Não vejo bem assim. Há mil influências
pessoais e variáveis de vida que conduzem um indivíduo a essa profissão quase
mediúnica, mas eu diria que muitos tradutores são pessoas que são refinadas em
estilo mas não têm (ou não tentam ter) capacidade fabulatória, capacidade para
inventar histórias, imaginar personagens a partir do zero, produzir peripécias.
Escritores assim muitas vezes tornam-se tradutores, porque na tradução é
proibido mexer no enredo, mas é preciso saber reproduzir inúmeros estilos.
O
que é traduzir? É escrever um livro que
já está escrito, só que escrevê-lo em português. O livro está lá, prontinho da
silva, em russo, alemão ou espanhol. O
tradutor não pode cortar cenas nem adicionar cenas. Não pode mudar o desfecho. Não pode reduzir
uma descrição demasiado longa, mesmo que não goste dela. Não pode alterar um
diálogo. Por outro lado, toda essa lista do “não pode” pode ser revertida,
positivamente, para um “não precisa”: ele não precisa fazer nada disso, porque
já está feito, o autor russo ou alemão já se deu o trabalho de arrancar tudo a
fórceps do próprio cérebro, e entregou a história finalizada para que ele, o
tradutor, faça o que mais gosta: tecer sua prosa como uma aranha tece sua teia. E acreditem, amigos, existem poucos prazeres
superiores ao de tecer mentalmente uma frase inteira e colocá-la no papel antes
que o vento (ou a campainha do telefone) a leve embora.