Vejam só que episódio mais pulga-atrás-da-orelha. Philip
Howard é um blogueiro que mora na ilha de Ocracoke, na Carolina do Norte.
Talvez eu esteja comprando gato por lebre, e ele seja apenas mais uma farsa ou
pegadinha internética; mas dessa suspeita nenhum de nós, que somos de carne e
osso, escapa. Então, suponhamos que ele existe mesmo e que no seu blog relatou
uma estranha descoberta (http://bit.ly/L5d9wk).
Philip estava lendo Guerra e Paz de Tolstoi, livro que
pode ter mais de mil páginas, dependendo da edição. Para a mão não cansar,
Philip comprou um e-reader Nook, fornecido pela cadeia de livrarias Barnes
& Noble. A certa altura ele leu uma frase com um verbo estranho. A frase era: “"It was as if a
light had been Nookd in a carved and painted lantern...." Mais ou
menos: “Era como se uma luz tivesse sido ????? numa lanterna entalhada e com
pinturas...”. Ele não entendeu essa palavra “Nookd”, mas aquilo se repetiu
outra vez, e outra. A repetição confirmou sua suspeita inicial: em todo o texto
daquela tradução a palavra “kindle” (que por acaso é a marca do e-book da
Amazon, maior rival da B&N) havia sido substituída por “Nook”, a marca do
seu próprio leitor eletrônico. Isto é mais ou menos como você abrir um e-book de
História do Brasil e ver que todas as vezes que o nome de Vasco da Gama aparece
ele está substituído por Flamengo da Gama.
Philip comenta: “Alguém na B&N – um funcionário de 20
anos? o Diretor Geral? – tinha programado essa substituição”. Certamente (digo
eu), sem dar atenção a incidências inesperadas (e mudanças indesejadas) de
outras palavras. Deve-se ter sempre cuidado com a melíflua sugestão
informática: “Substituir tudo”. Metade dos meus cabelos brancos com revisão de
textos devem-se a ofertas deste tipo. O problema maior, no entanto, diz Philip,
é não sabermos até que ponto o texto pode ter sido manipulado. Se eu nunca li o livro, se eu não conheço a
obra de Tolstoi, não sei ler em russo...
Que tipo de segurança, de confiança, posso ter a respeito da
autenticidade daquilo que estou lendo?
Até parece que foi o livro eletrônico que inventou esse tipo
de insegurança, mas devem ter sido a Arte da Cópia, primeiro, a Arte da
Tradução, depois, e a Imprensa, por fim. Como podemos confiar na honestidade
moral e intelectual (para não falar na competência técnica) de milhões a quem
coube entender, traduzir, examinar, copiar?
Cada vez que uma informação passa por uma mente humana ela é refratada,
como a luz passando através da água. O livro eletrônico e seu “substituir tudo”
são apenas a ampliação desse risco antigo, e a introdução de novos dilemas
cruciais de ordem técnica.