sexta-feira, 27 de abril de 2012

2855) Drummond: "O Sobrevivente" (27.4.2012)



(Drummond, por Dirceu Veiga)


O Modernismo foi, entre muitas outras, coisas, a crise da poesia lírica, a poesia dedicada à expressão do Eu, posta em xeque pelas enormes transformações sociais no Ocidente no período (digamos) 1850-1918.  O mundo deixou de ser simples, e categorias de pensamento que vigoravam há séculos foram pulverizadas durante a vida dessa geração. O lirismo deixou de ser um cortar-e-colar de expressões infalíveis (“seio palpitante”, “virgem pura”, “beijos apaixonados”, etc.) para absorver um olhar um tanto cínico e cúmplice entre o poeta e a mulher amada.  E não só a mulher amada.  Foi também uma crise lírica entre o poeta e sua Pátria (usava-se muito esta palavra naquela época), sua classe social, os métodos de enriquecimento dos seus antepassados, o próprio planeta.

Em “O sobrevivente”, incluído em Alguma Poesia (1930), Carlos Drummond lança seu brado ironicamente apocalíptico: “Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade. / Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de verdadeira poesia. / O último trovador morreu em 1914. / Tinha um nome de que ninguém lembra mais.”.  CDA devia estar pensando no começo da I Guerra Mundial; curiosamente, quem morreu em 1914 foi o primeiro trovador dos novos tempos (Augusto dos Anjos), da nova visão de mundo, do novo vocabulário, do novo ponto de vista.

O ponto de vista agora é tecnológico, quase de ficção científica: “Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples. / Se quer fumar um charuto aperte um botão. / Paletós abotoam-se por eletricidade. / Amor se faz pelo sem fio. / Não precisa estômago para digestão. (...)”  É o fascínio pelo que o século 20 nos prometeu de automatização, de mecanização das tarefas, um mundo dos Jetsons, ecoado por Guimarães Rosa no seu Grande Sertão: “Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente pode permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as foices, para colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é o homem, é sua, dele, obediência?”.

Drummond conclui: “Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado. / E se os olhos  reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio. / (Desconfio que escrevi o poema.)”.  O poeta sobrevive ao fim do mundo pré-tecnológico. Sabendo da necessidade de uma nova poesia para esse novo mundo, e se arrisca nessa nova poética onde o máximo que pode se permitir é desconfiar que um poema foi escrito, mesmo que essa desconfiança seja, naquele momento, a única alteração indicada pelo seu barômetro poético.

2854) A primeira vez de uma palavra (26.4.2012)





(Pandemonium, John Martin, 1825)

Um passatempo dos lexicógrafos é rastrear, em documentos antigos, o primeiro uso documentado de uma palavra.  Sabemos, por uma série de deduções, que certa palavra apareceu no século tal, em tal ou tal contexto, mas é preciso ter uma prova (um livro, jornal, etc.) em que ela apareça oficialmente pela primeira vez.  

Claro que depois dessa descoberta pode-se acabar descobrindo que anos antes havia uma “primeira vez” ainda mais primeira do que a outra, mas, paciência, a ciência é assim mesmo.  Se um novo fato incontestável é descoberto, arquiva-se o fato anterior.  A ciência existe para servir os fatos.

O saite Brainpickings, sempre cheio de pequenos fatos curiosos, publica uma série de exemplos do primeiro uso conhecido de palavras hoje banais (na língua inglesa, claro), de acordo com o Oxford English Dictionary

(Nesta coluna, já comentei o livro O Professor e o Demente, que aborda aspectos da criação desse dicionário: http://bit.ly/J1BatV). 

Ficamos sabendo que “anarquia” (“anarchy”) apareceu primeiro em 1539, num texto de Richard Taverner, definida como “a liberdade ou licença ilegal da multidão”. 

A palavra “pandemônio”, hoje tão popular, surgiu nobremente no Paraíso Perdido de John Milton (1667), onde ele se refere a “um solene Conselho a ser realizado no Pandemonium, a nobre Capital de Satã e seus Pares”.

Infelizmente os registros de primeira vez não mencionam a etimologia (a origem da palavra), porque eu gostaria de saber de onde veio “piquenique” (“pic-nic”), mencionada por Lord Chesterfield numa carta a seu filho em 1748.  

Da mesma época (1754) vem a palavra “cookie”, bolinho, que por vias transversas tornou-se tão popular no Brasil através da Internet: “cookies” são pequenos arquivos que são transportados para nosso computador quando entramos num saite, e que facilitam nosso reconhecimento quando vamos lá de novo.

Algumas dessas palavras se devem a autores clássicos: “audaciosamente” (“audaciously”) a Shakespeare (1598), “shopboy” a Jane Austen (1813). 

No caso de Shakespeare, posso imaginar que se trata de uma formação possível na língua (um advérbio a partir de um adjetivo um tanto rebuscado) mas que nesse caso não ocorrera a ninguém. No caso de Austen, era decerto uma palavra corrente na linguagem cotidiana da época, mas sem registro escrito. 

É bom lembrar que o Oxford Dictionary registra apenas o uso impresso mais antigo; raramente a palavra foi criada pelo autor em questão.  Está livre, oral, solta como a luz do sol. 

Quantas décadas uma palavra precisa estar na boca do povo até que um intelectual se atreva a reproduzi-la na página?