Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
terça-feira, 2 de agosto de 2011
2624) O monstro da letra (2.8.2011)
É um gracejo recorrente no meio dos compositores. Quando a gente ouve o CD novo de alguém e alguma das faixas tem uma letra muito ruim, muito idiota ou muito incompreensível, a gente balança a cabeça com ar magnânimo e diz: “Essa aí ele não terminou, gravou com o monstro”. O que é o monstro? O monstro são aquelas palavras tatibitates ou sílabas sem sentido que a gente costuma cantarolar enquanto está compondo a música, geralmente ao violão ou ao piano. A gente vai tocando as notas no instrumento e fazendo uma emissão vocal qualquer, para ir estabelecendo as notas da melodia. Como a canção ainda não tem letra (supondo-se que ela começou a ser criada nesse instante, e não sobre uma letra pré-existente), é preciso balbuciar uma letra qualquer, mesmo sem sentido. Um tralalá, um tchubi-dubi-dubi, um laraiê-laraiê, um can-ganscans-gansculans, um tan-tarin-tantan... Uma percussão fonética. Pra que? Pra demarcar com certa nitidez inicial como vão ficar as notas (e consequentemente as sílabas da letra) em cada trecho da melodia.
Muita gente, ao fazer isso, usa palavras colhidas ao acaso. (Que magnífico tratado freudiano será escrito um dia, quando um pesquisador sério fizer um balanço destes exemplos e explicar tintim por tintim que nenhum deles tinha nada de aleatório!). Quando Paul McCartney compôs “Yesterday”, estas três sílabas ficaram meses ocupadas pela prosaica expressão “scrambled eggs”, “ovos mexidos”. Quando George Harrison compôs “Something”, o segundo verso (“attracts me like no other lover”) foi o último a ser escrito, porque o compositor apegou-se ao verso memorizador inicial, que era “attracts me like a cauliflower”, “me atrai como uma couve-flor”). John Lennon, sempre um pitbull de sinceridade, dizia que no começo dos Beatles eles não ligavam a mínima para as letras, o que visavam era criar uma sonoridade, um ritmo, uma levada. A letra era qualquer coisa: quero pegar na sua mão, ela te ama, e eu a amo, não pode me comprar amor...
É isso que a gente chama “o monstro”: uma letrazinha idiota que serve apenas para guardar o lugar para a letra definitiva que (vida havendo e saúde não faltando) será escrita um dia. Como sabemos o que é a indústria e quem são os artistas, acontece que muita letra fica no monstro. Eu te amo, sem você não sei viver, só penso em você, vamos dançar, vamos rebolar, eu e você, isso é o amor...
Eu uso monstros a torto e a direito. Me lembro que quando eu e mestre Fuba começamos a compor uma música cujo verso final dizia: “Gira cascaviou”. O que é isso? Não é nada, é o monstro da letra. Podia ter ficado assim, e tudo bem, seria uma brincadeira a mais . Mas alguma teimosia nos empurrava, como se dissesse, “não, ainda não está bom, isso é muito besta, deve ter alguma coisa melhor para dizer aí”. Levou quase um ano, mas apareceu. Virou “A Volta dos Trovões”, gravada por Elba Ramalho. Todo monstro pode ser derrotado.