domingo, 1 de maio de 2011

2545) Traduzir o obscuro (1.5.2011)




Numa entrevista recente ao jornal literário Rascunho, de Curitiba (março de 2011), o escritor e tradutor Marcelo Backes comentou, ao ser perguntado sobre o nível das traduções brasileiras em geral: 

"Acho que o nível da tradução tem melhorado, inclusive porque os tradutores mais críticos estão deixando de ser meros intérpretes das expectativas do leitor e, aos poucos, estão dando mais atenção à arte da obra original do que ao gosto do leitor da tradução. Deixam complicado o que está complicado, e mantêm poeticamente obscuro o que é poeticamente obscuro. (...) A simplificação da obra de arte não ajuda nada no sentido de torná-la mais compreensível”.

Um tradutor procura geralmente o equilíbrio entre tornar o texto inteligível ao leitor e respeitar o texto no que o texto tem. 

Um texto literário, não importa em que língua seja escrito, e não importa o talento de quem o escreveu, contém partes pouco compreensíveis, partes obscuras. Contém às vezes erros, ou trechos mal escritos. 

Por mais brilhante que seja um autor, ele não é brilhante o tempo inteiro, e sabemos que muitos grandes escritores têm um texto desleixado e cheio de furos (são grandes autores porque têm outras qualidades, em outros departamentos). 

É voz corrente no Brasil a galhofa de que os livros de Paulo Coelho são muito melhores traduzidos do que em português, porque lá fora os tradutores corrigem seus defeitos de redação e de estilo.

Corrigem mesmo? Se o fazem, que vergonha. Porque não cabe ao tradutor melhorar o texto alheio. Se a frase é cambaia, que seja traduzida por uma frase cambaia, de sentido equivalente, no idioma-alvo. Se é obscura, que permaneça obscura ao passar pelo filtro. 

É preciso mostrar ao leitor-alvo quem é o escritor, com suas pequenas incompetências, suas contradições, seus deslizes de ritmo, sua empáfia ou vulgaridade vocabular... Há autores que escrevem bem, mas pontuam mal. Outros não revisam o que escreveram. Se um autor repete um verbo dez vezes em dez linhas, o tradutor deve fazer o mesmo ou recorrer a sinônimos?

Muitas vezes me deparei com um parágrafo que se estendia por três ou quatro páginas. O editor aconselhava: “Divida. Faça um parágrafo novo de vinte em vinte linhas, pra clarear a página”. Eu dizia: “É um texto de 1880, publicado em jornal, naquele tempo os caras queriam aproveitar cada centímetro”. Ele dizia: “Sim, mas está sendo lido hoje. O leitor de hoje gosta de uma página com muitos parágrafos, uma página que respira.” 

Obedecer ao texto antigo ou ao leitor atual? Decisões assim são tomadas a cada passo da tradução de uma obra. Qualquer autor, por melhor que seja, tem pequenos cacoetes, hábitos ou defeitos que (num mundo ideal!) um tradutor deveria tentar reproduzir. 

Às vezes uma frase desmantelada em inglês nos sugere uma frase perfeita (e de sentido equivalente) em português. Devemos usá-la? Ou devemos traduzir as imperfeições da frase original?






2544) O charme da transgressão (30.4.2011)



Todo mundo pensa que a intenção de Hitler ao criar o nazismo era se instalar no poder e fazer com que o seu III Reich durasse mil anos. Ledo engano. Ele sabia muito bem que isso era impossível. Quem matou a charada foi Jorge Luís Borges, no seu conto “Deutsches Requiem”. A intenção de Hitler foi trazer para o mundo o reino da violência, da guerra, da crueldade absurda e planificada, o reino do fogo e do metal. Como diz Otto Dietrich zur Linde, o oficial nazista que narra o conto: “Ameaça agora o mundo uma época implacável. Nós a forjamos, nós que já somos sua vítima. Que importa que a Inglaterra seja o martelo e nós a bigorna? O importante é que reine a violência, e não a servil timidez cristã”. O nazismo teria, assim, conseguido seu objetivo: transformar o mundo inteiro numa máquina de guerra e de violência insensata. Para destruir o Mal, o mundo teve que se tornar tão Mau quanto ele.

Acontece algo parecido com o conceito de transgressão. Minha geração cresceu num mundo que por um lado era asfixiantemente conservador e tradicionalista (na casa, na família, na escola, no trabalho) e por outro lado, devido à ditadura militar, brutalmente repressor (nas comunicações, nas artes, nas manifestações públicas). Daí que um dos principais valores endeusados por todos nós foi a Transgressão. Era preciso transgredir para continuar respirando. Era moralmente obrigatório transgredir para que a gente não ficasse se considerando o mais covarde dos vermes.

Essa geração criou todos os tipos de endeusamento à transgressão. Sob a forma de arte de vanguarda, de poesia marginal, de humorismo, de comportamento rebelde, de estética pessoal (cabelo, roupas), de uso do palavrão e da nudez (no teatro, p. ex.), de uso de drogas, etc. E, espalhando-se como uma nuvem ou uma neblina em volta de tudo isto, uma atitude transgressora permanente. Nossos filhos se impregnaram dessa neblina cultural sem saber muito por onde ou por quê. Herdaram aquela frasezinha-de-efeito: “Não confie em ninguém com mais de 30 anos”, e os que cunharam a frase têm 50 agora. A ditadura passou, o mundo virou pop. E aí está uma população jovem que ganhou a liberdade de graça e mantém uma atitude desafiadora, sarcástica. Às vezes apenas simbolicamente agressiva, outras vezes rancorosa e hostil (tudo depende do contexto em que nasce e vive cada um).

Criou-se um mito de que é preciso transgredir sempre, desobedecer sempre, ser contra tudo, ridicularizar sempre, continuamente, a quem quer que seja, ricos e pobres, velhos e novos, nacionais e estrangeiros. Não importa quem, e importa ainda menos por quê. É como uma geração criada na prisão, que ouviu dizer que é preciso arrombar as portas, e que depois que o fez saiu pela cidade afora, arrombando do mesmo jeito todas as portas que encontrava pela frente. Bem que se diz que na vida não existem prêmios nem castigos, apenas consequências.