Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quinta-feira, 28 de abril de 2011
2542) O que é cinematográfico (28.4.2011)
Essa palavra vive sendo usada a torto e a direito. Seu uso mais remoto que me recordo é o que fazíamos na infância. Havia uma exclamação recorrente para comentar qualquer coisa extraordinária. Dizíamos: “É negócio pra cinema!”. Ou seja, era uma coisa digna de aparecer num filme, uma coisa equivalente às coisas extraordinárias que víamos nos filmes. Um carro, uma mulher, uma roupa, uma paisagem, uma engenhoca tecnológica...
Outro uso frequente era no jogo de pelada, quando um goleiro fazia uma “ponte” ou dava um salto acrobático para defender um chute. Todo mundo dizia: “Você está fazendo muito cinema!” ou “Para de fazer cinema!”. Este uso tinha função crítica. Subentendia-se que o goleiro estava mais preocupado em fazer posições acrobáticas (posando para câmaras inexistentes) do que em defender a bola. “Para de fazer cinema!” significava, portanto: “Para de fazer enfeites desnecessários, faz o feijão com arroz!”.
Hoje o que se usa mais é o adjetivo “cinematográfico”, e é interessante a frequência com que o termo é utilizado para descrever cenas de ação ou de violência. “Foi um assalto cinematográfico”, “os carros saíram a toda velocidade, numa perseguição cinematográfica”, “um tiroteio cinematográfico”. Nesta última acepção, foi usada por uma testemunha para descrever o massacre das crianças na escola Tasso da Silveira, em Realengo. As pessoas chamam de cinematográfico tudo que envolve uma ação violenta, coordenada, fora do comum.
Isto mostra como aos poucos vai sendo inculcado um conjunto de memes na cabeça do público. Por exemplo: vemos o tempo inteiro as pessoas usarem o adjetivo “poético” para qualificar de modo quase automático, obrigatório, coisa que só têm ligação com a poesia de um modo muito distante. Dizem que um por-do-sol é poético, ou que uma pessoa de alma poética é necessariamente uma pessoa que se emociona com facilidade. A poesia é algo muito mais amplo do que isto; mas o clichê, a imagem “kitsch” do que é ou deveria ser a poesia consagra esse uso banalizado do adjetivo. (Quem chamaria de “poético” um retirante fugindo da seca, antes de João Cabral?)
O mesmo está se dando com “cinematográfico”, que está tendo sua aplicação dirigida para uma faixa muito estreita de experiências. É possível pensar em centenas de imagens ou de cenas típicas que poderiam, em tese, ser identificadas com a essência mesma do cinema. Por exemplo: um indivíduo de costas para a câmara, afastando-se ao longo de uma estrada que se perde no horizonte. Existe clichê mais cinematográfico do que este? E no entanto se fizerem uma enquete entre 10 mil espectadores, pedindo-lhes para descrever uma cena que julgassem “cinematográfica”, duvido que alguém nos desse um exemplo desse tipo. Na mente do espectador comum, “cinematográfico” é sinônimo de luta corporal coreografada e intensa, tiroteio com sangue jorrando em câmara lenta, perseguição vertiginosa a toda velocidade, carros explodindo.