Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 10 de abril de 2011
2527) A anedota de Rui Barbosa (10.4.2011)
Deve ser uma das peças mais famosas da literatura oral brasileira. Às vezes é atribuída a Rui Barbosa, outras vezes a um intelectual qualquer. É sempre um diálogo entre um erudito de fala pomposa e um sujeito rústico que não entende o que ele está dizendo.
Em alguns casos, o intelectual está querendo atravessar de balsa um rio; em outros, está querendo evitar o furto de um objeto ou animal; em outros ainda, está pedindo para carregar uma carroça com caixas e outros volumes.
Vou contar a versão mais antiga que conheço. Contarei de memória, reinventando os trechos de que não me lembro, como é de praxe na Literatura Oral.
Ora pois, lá vinha Rui Barbosa andando pela zona rural quando a estrada chegou à beira de um rio. Havia uma balsa amarrada a um tronco, e nela um negão forte, que era o remador. Rui, cansado de andar, apoiando-se numa bengala, dirigiu-se a ele:
“Ó, nobre etíope de estatura avantajada! Quanto queres de remuneração pecuniária para trasladar meu indelével corpo deste polo àquele hemisfério? Peço-te que uses de magnanimidade ao fazer o cômputo da remuneração monetária a que tens direito, porque apesar da sisudez de minha indumentária estou longe de ser um nababo ou potentado, e não disponho de lastro fiduciário para fazer frente a um débito de maiores proporções”.
O barqueiro ficou perplexo e disse algo como:
“Eita doutor, o senhor tá falando inglês?!”
Rui tornou de imediato:
“Ah, aborígine de mentalidade incúria! Se o dizes por mera ignorância intrínseca ao teu ser, e por falta de luzes civilizatórias auferidas na mais tenra infância, então transijo. Mas se pretendes menoscabar a minha alta prosopopéia, pespegar-te-ei um golpe, com meu poderoso báculo, que irá fender tua caixa craniana e espalhar pela paisagem a massa encefálica de que não fazes uso, produzindo um ribombo tão ensurdecedor que fará estremecer o entroncamento das sequóias e afugentará para sempre as aves migratórias deste meridiano!”.
Tipo isso. O mais interessante de episódios assim é que – como ocorre com os Mitos estudados pelos antropólogos, como ocorre com as versões do Romanceiro Popular Nordestino, como ocorre com as nossas prosaicas anedotas de mesa de bar – não há duas versões iguais.
Mesmo que um pesquisador grave mil pessoas contando a mesma historieta, todas contarão versões substancialmente diversas umas das outras, e não estou me referindo a uma mera troca de sinônimos ou mudança na ordem das frases. As circunstâncias mudam, o vocabulário muda, as ações descritas mudam – mas a história é essencialmente a mesma.
A Literatura Oral existe numa zona cinzenta entre a fixidez da Literatura Escrita e a improvisação do teatro popular (tipo Commedia dell’Arte) em que não se trabalha com um texto fixo e sim com um roteiro de ações e de frases guardados de memória, o qual, no momento da execução, fica sempre ao sabor da memória e da agilidade mental do contador. Contar é reinventar, sempre.