quarta-feira, 6 de abril de 2011

2523) “A Estrada” (6.4.2011)



Terminei de ler The Road (2006), já traduzido e publicado no Brasil pela Alfaguara. Mais conhecido do que o livro talvez seja o filme, dirigido em 2009 por John Hillcoat, com Viggo Mortensen. Não vi o filme; o livro, que terminei de ler ontem, é daqueles que me deram vontade de, chegando à última página, voltar à primeira. Não porque quis esclarecer dúvidas ou quis reinterpretar o começo da história à luz do que foi esclarecido no final, mas pelo impulso instintivo de fazer com que aquela história continuasse acontecendo. Não sinto isto com qualquer livro, e é curioso que o tenha sentido com este que já foi considerado “o livro mais depressivo de todos os tempos”.

Houve um cataclismo qualquer que destruiu a civilização, e na Terra devastada um homem foge com seu filho de 7 ou 8 anos. As florestas foram arrasadas pelo fogo, não existem mais pássaros nem animais, os rios e o mar estão contaminados e não têm mais peixes. A vida nesse mundo permanentemente nublado e chuvoso consiste em procurar comida e armazenar água. Não existem mais cidades, nem eletricidade, água potável, comunicações, vida organizada. Os sobreviventes se organizam em milícias armadas que praticam o canibalismo e percorrem os continentes, saqueando tudo que encontram.

É um cenário pós-apocalíptico parecido com o de vários romances de Stephen King, mas Cormac McCarthy tem todas as qualidades de King sem nenhum dos seus defeitos. O livro acompanha, com uma secura verbal impressionante, a jornada de pai e filho rumo ao litoral (‘não sobreviveremos a outro inverno se ficarmos aqui”, diz o pai), empurrando estrada afora um carrinho de supermercado onde amontoam tudo que pode ser útil: lençóis, roupas, latas de comida em conserva, garrafas de água, todo o combustível que conseguem encontrar. Não conseguem achar sapatos: seus pés estão envoltos em panos e plástico, e amarrados com fios. Ao ouvir qualquer barulho empurram o carrinho para o mato e se escondem. Há cenas violentas e chocantes, mas estas, num livro de 280 páginas, não totalizam nem cinco.

O que nos prende no livro são os personagens. McCarthy raramente nos diz o que eles estão pensando ou sentindo. O livro é quase todo narrado “de fora”, apenas mostrando o que eles dizem ou fazem. Os personagens ganham, assim, o que chamo de “interioridade pressentida”, um conjunto complexo de qualidades mentais e emocionais que somos forçados a deduzir para justificar suas palavras ou ações. Pai e filho repetem pequenos rituais de sobrevivência e de reafirmação, frases que lhes servem como “bordão” para manter a sanidade mental e a convicção de que, por algum motivo, eles são “as pessoas boas” e são eles que estão “conduzindo a chama”. Um livro depressivo? Jamais. Um livro que, explorando uma situação limite, usa com plenitude recursos literários tão frugais quanto os que vão garantindo, dia a dia, a sobrevivência dos seus personagens.