Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quarta-feira, 2 de março de 2011
2493) Kadhafi (2.3.2011)
No dia em que escrevo, a insurreição popular na Líbia está comendo pelas beiras a ditadura de Muhammar Kadhafi. A situação me lembra a dos protagonistas do conto “Casa Tomada” de Cortázar, em que a mansão de um casal de irmãos vai sendo invadida por desconhecidos. Cada vez que um aposento é tomado, eles o trancam por fora e não chegam mais perto. O espaço em que vivem vai se tornando cada vez menor. Quando é tomado o último recinto, eles saem, trancam a casa por fora e jogam a chave no esgoto da rua. Kadhafi fará o mesmo? Morrerá heroicamente, como ameaçou, de cimitarra em punho, enfrentando os invasores? Ou fugirá num jatinho particular, na calada da noite, com os costumeiros bilhões de dólares, rumo ao aconchego dos spas capitalistas?
Hosni Mubarak, o ditador egípcio recém-defenestrado, era um ditador de outra natureza. Militar-burocrata, foi adquirindo com o passar dos anos um aspecto vulturino de vampiro ou de milionário insone que se alimenta de fígados de criancinhas. Se um dia filmarem sua vida, pena que Bela Lugosi não esteja vivo para interpretá-lo. Mubarak era o típico conspirador de bastidores (dos quais há muitos em nosso Congresso Nacional), um indivíduo aparentemente sem talentos e sem prazeres, uma máquina de produzir maquinações, um ambicioso capaz de juntar fortunas mas não de desfrutá-las. Um calvinista do Mal, em suma, um sujeito que se nega os deleites da vida pelo sacerdócio de infelicitar a vida alheia. (Não sei nada da vida desse sujeito; falo da imagem que transparece. Vai ver que é o maior farrista.)
Kadhafi é, comparado a esse, um personagem divertido. É difícil não achar graça nas suas roupas extravagantes, nos seus óculos excêntricos que deixam Elton John no chinelo, na sua grandiloquência infantil. Entre o ditador soturno e o ditador exuberante, fico com este último. Seu histrionismo, se não atenua suas culpas, pelo menos sugere que ele é humano. E ao liberar a sua face burlesca ele nos lembra que o Mal não é monolítico – se fosse, simplificaria tanto os nossos dilemas éticos! O Mal é uma colcha de retalhos furtados às pressas, furtados dos variados tecidos que compõem a vida.
O ditador delirante foi, meio século atrás, um personagem típico da cultura latino-americana, basta ver as obras de Garcia Márquez, Miguel Ángel Astúrias, Glauber Rocha (Cabeças Cortadas), Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos, etc. O mundo árabe e o mundo muçulmano (os dois não são a mesma coisa) têm produzido uma grande literatura e um grande cinema. Será que já existem romances sobre essa leva de ditadores que, depois dos da América Latina e da Europa Oriental, começa a cair como dominós? Sujeitos fanfarrões e sanguinários, como Saddam Hussein ou Kadhafi, são irrecuperáveis como vultos políticos, mas a literatura, que redime tudo, que transforma lixo em arte, que transforma tragédias em redenção e mediocridade em alegoria, é a única força capaz de justificar a passagem desses indivíduos pela Terra.