Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 27 de fevereiro de 2011
2491) A moral da fábula (27.2.2011)
No final das fábulas de Esopo ou de La Fontaine, vem sempre aquela frasezinha curta que nos acostumamos a chamar de “a moral da história”.
O lobo bebe água no rio junto ao cordeiro, faz-lhe um monte de acusações e por fim o devora. Após o desfecho, vem uma “moral” tipo: “Quando um poderoso decide castigar um fraco, qualquer pretexto serve, e às vezes pretexto nenhum”.
Essas fábulas têm um propósito didático e moralizante, tanto que continuam a fazer parte da nossa literatura infantil. O lado moralizante não precisa de explicações – trata-se de implantar na mente dos pimpolhos princípios morais, éticos, etc. O lado didático é mais sutil e mais interessante. Trata-se de dizer, por um lado: “Qualquer episódio concreto pode ser interpretado sob a forma de conceitos abstratos”. E por outro: “Qualquer conceito abstrato pode ser ilustrado através de pequenas historietas aparentemente ambientadas num mundo parecido com o nosso”.
A História é uma ciência em que somos o tempo inteiro induzidos a passar do concreto para o abstrato.
Se nos deparamos com os registros de tráfico de escravos africanos durante 150 anos, podemos traçar um gráfico que ilustra as idas e vindas desse comércio e afirmar, por exemplo, que “do ano X ao ano Y o tráfico cresceu, mas do ano Y ao ano Z ele diminuiu”.
Mesmo conceitos tão óbvios quanto crescer e diminuir só podem ser formulados se tivermos registros confiáveis sobre as quantidades, ao longo de um período de tempo aceitável.
A passagem do abstrato para o concreto tem mais a ver com a literatura. Uma coisa é a professora perguntar ao pirralho: “Zezinho, quanto é 15 dividido por 3?”. Ou o guri estudou tabuada ou não vai saber responder. Mas ela pode criar uma pequena obra de ficção. “Zezinho, uma mulher foi ao mercado e comprou quinze chocolates. Ela tem três filhos, e, para que eles não brigassem, teve que dar a mesma quantidade a cada um. Quantos chocolates cada um deles recebeu?”.
Motivado por essa pequena tensão dramatúrgica, o guri é capaz de entender não só a possibilidade como também a importância de se dividir quinze por três; e faz a conta.
Grande parte da literatura nasce assim, de uma idéia abstrata que ocorre ao escritor enquanto ele fuma cachimbo (“A sociedade de consumo despersonifica os seres humanos, e faz com que eles vejam uns aos outros como meras mercadorias...”) e a partir disso ele começa a escolher personagens-função: este aqui vai ser o Capitalista Inescrupuloso, aquele outro vai ser o Trabalhador Ingênuo, esta vai ser a Companheira Solidária, aquela outra a Intelectual Egocêntrica...
O problemas das idéias abstratas é que não produzem narrativas que pareçam com a vida humana. Produzem alegorias, histórias em que os personagens são tão programados e previsíveis quando um zumbi de videogame.
(Os videogames, aliás, estão padecendo desse mesmo mecanicismo, que estraga as Utopias Proletárias, as Fábulas Cristãs e outras narrativas que nunca saem do abstrato).