Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
2468) "Pierrô" (1.2.2011)
Este conto de Guy de Maupassant, que li há meio século, me volta à mente quando esbarro com uma dessas situações propensas à alegoria. Porque, diante das grandes catástrofes, precisamos reduzi-las ao tamanho das pequenas tragédias, para termos a sensação de que estamos entendendo aquilo.
Pois bem: a viúva Lefèvre mora numa aldeiazinha da Normandia, em companhia de sua criada, Rose. A velha é sovina como um cacto, e certa noite descobre, alarmada, que um ladrão pulou o muro e roubou algumas besteiras da horta. Ela fica insegura e resolve arranjar um cachorro. Oferecem-lhe vários, mas ela sempre acha o preço extorsivo.
Até que um vizinho traz um filhote horroroso: “um estranho animalzinho, todo amarelo, quase sem pernas, corpo de crocodilo, cabeça de raposa e cauda em forma de trombeta, verdadeiro penacho do tamanho do corpo”. Apesar da descrição é mesmo um cachorro, e ela lhe dá o nome de Pierrô.
Pierrô cresce, e, coitado, se revela um desastre como guarda. Não late para nenhuma visita, faz festas a qualquer estranho; só late quando tem fome, e late com força. As duas, apesar de secas e empertigadas, se afeiçoam ao bicho.
Até que lhes cobram um imposto sobre a posse de animais domésticos: oito francos! A viúva se escandaliza e a criada também (é avara com os vinténs da patroa, por temer que venham a lhe faltar um dia). Resolvem fazer o que se faz na aldeia: jogá-lo num poço onde morrerá de fome.
Jogam-no, mas dias depois, tomadas de remorsos e pesadelos, as duas se arrependem. Agora é tarde para tirar Pierrô dali! Elas levam pão com manteiga, atiram os pedaços no poço, e choram diante dos latidos alegres de Pierrô.
Isso dura alguns dias, até que certa manhã, ao atirar o pão, elas ouvem um latido mais forte. Alguém jogou outro cão, um cão dos grandes, no poço! Cada pedaço de pão que atiram provoca um alarido lá embaixo, e ganidos de dor que elas reconhecem. Gritam: “É para você, Pierrô!”, mas de nada adianta.
E por fim a viúva diz, em tom ácido: “ – Absolutamente não posso alimentar todos os cachorros que forem jogados aí dentro. Temos de desistir. – E, indignada ante a idéia de uma porção de cachorros vivendo à sua custa, ela se retirou, levando consigo o resto do pão, que comeu, enquanto caminhava”.
C’est la vie! As autoridades não detestam os pobres; pelo contrário, têm boas intenções para com eles, e, se pudessem, fariam de tudo para ajudá-los. O problema é que pobre dá muita despesa e pouco lucro, então é melhor empurrar a todos para o fundo de um poço, a encosta de um barranco, a periferia de um subúrbio.
Quando os sentimentos humanitários botam a cabeça de fora, as autoridades começam a enviar dinheiro para os pobres, mas no meio do caminho aparece um cachorro grande, insaciável, que devora tudo. Por mais que as autoridades gritem: “É para vocês, pobres!”, o cachorro grande se atravessa. E elas nada podem fazer, porque quem botou o cachorro grande ali foi, sem dúvida, outra autoridade.