Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
terça-feira, 23 de novembro de 2010
2408) O nosso século 19 (23.11.2010)
(Gustave Doré, Londres)
Fala-se muito hoje que o romance realista clássico não tem mais lugar em nossa sociedade tecnológica, informatizada, pós-moderna. A grosso modo, o romance realista é o romance que conta uma história com começo, meio e fim, descrevendo a vida de pessoas reconhecíveis num ambiente complexo, descrito com nitidez social e verossimilhança histórica. Esse romance seria mais ou menos, ressalvando a peculiaridade de cada autor, o romance praticado por Balzac e Flaubert (França), Charles Dickens (Inglaterra), Tolstoi e Dostoiévski (Rússia), etc. Esse tipo de literatura, para muitos críticos, teria sido posto em xeque, ou até mesmo inviabilizado, por uma literatura mais introspectiva e psicológica, além de estruturalmente descontínua e fragmentada: a de James Joyce (Irlanda), Virginia Woolf (Inglaterra) e Marcel Proust (França).
Curiosamente os nossos “balzacs” foram todos do século 20: Jorge Amado, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz. São os nossos grandes realistas, e, mesmo com a pressão das vanguardas, eles continuam a ser lidos e continuamos a considerar que sua literatura corresponde a uma necessidade do público leitor. O leitor tem necessidade de literatura mimética, de literatura que pareça contar uma história real com pessoas de verdade. Talvez esta necessidade tenha sido produzida artificialmente ao longo de dois séculos, mas que existe, existe.
Um artigo recente de George Packer (http://tinyurl.com/2c5652u), intitulado “Dickens in Lagos”, propõe uma ideia interessante. Ele relata um diálogo com um jovem leitor de Burma, que adotou o pseudônimo de Somerset em homenagem ao escritor inglês Somerset Maugham, um realista de boa cepa. O rapaz, fã também de Charles Dickens, afirmava, para surpresa do britânico: “Nenhum inglês ou americano vivendo no século 21 pode entender Dickens tão bem quanto eu. Eu vivo numa atmosfera dickensiana. Nosso país está atrasado em pelo menos dois séculos em relação ao mundo ocidental. Minha vizinhança – sombria, pobre, com pequenas manufaturas domésticas, crianças brincando na rua, casais brigando o tempo inteiro, gente endividada, gente suja. Isso é puro Dickens. Eu cresci nessa atmosfera tipo Dickens. Estou mais preparado para entender Dickens do que esses romances modernos. Eu não sei o que é ar condicionado, o que é metrô, o que é datiloscopia”.
O retrato feito pelo jovem Somerset é curioso porque reflete em grande medida uma realidade brasileira. É um retrato incompleto, é claro, e não invalida a literatura de vanguarda de hoje, mas explica parcialmente por que motivo os autores de 150 anos atrás continuam atuais: porque a realidade social e o repertório literário de grande parte de cada país está mais próximo de Dickens do que de Paul Auster, mais próximo de Dostoiévski do que de Robbe-Grillet. A literatura do século 19 continua viva nas periferias do século 21, e nada indica que não tenha, ela também, uma longa existência pela frente.