Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
2397) “A Volta dos Mortos Vivos” (10.11.2010)
Assistindo tarde da noite, na TV a cabo, A Volta dos Mortos Vivos de Dan O’Bannon (1985), pensei na fascinação que os filmes de zumbis exercem sobre o público jovem. Rapazes e moças adolescentes gostam de quaisquer filmes de terror; veja-se o sucesso serial de Freddy Kruger, Jason, “Serra Elétrica” “Jogos Mortais”, etc. Mas os pútridos zumbis têm um encanto mórbido especial. Lembro ainda hoje minha fascinação, aos dez anos, diante dos zumbis de filmes como Invasores Invisíveis e outros, que comparados aos de hoje são de uma inocência a toda prova, mas na época despertavam calafrios.
Os zumbis são diferentes de Drácula ou de Frankenstein porque são um monstro quantitativo, não personalizado. Não se sabe o que é mais terrível, se a dificuldade em matar um único monstro ou a facilidade em matar bilhões de monstros que não param de surgir em fila indiana, cópias equivalentes ao que acaba de ser exterminado. O zumbi é o morto típico da era da cópia digital, da infinita reprodutibilidade técnica tanto da obra de arte quanto do pesadelo. No século 20 tínhamos o monstro único, indivisível, o monstro tão ímpar quanto o ser humano, quanto o Indivíduo criado pelo Iluminismo. Hoje, temos o monstro inesgotável, inextinguível, cópia da cópia da cópia da cópia, e que não para de brotar.
Para o cinema norte-americano, deve haver ali um pouco do horror de enfrentar povos anônimos, depauperados, sujos, lumpen-proletários: os vietcongs, os talibãs, os habitantes de Canudos, os pobres e esfarrapados em geral. Os zumbis são sub-humanos que, no seu existir incontrolável ameaçam submergir o “humano”. E há também, superposta a esta, uma ameaça mais terrível ainda: o fato de que as pessoas normais (nós, nossos amigos, nossa família) estão sujeitas a se transformar de uma hora para outra num desses monstros. Seu filho pode virar punk. Sua namorada pode virar terrorista. Sua irmã pode virar comunista. Seu marido pode virar um drogado.
Os mortos-vivos são também um pesadelo em torno do tema da recusa à morte, do apego irracional à vida, que deixa de ser vista como valor absoluto. O zumbi é o morto que se recusa a morrer, ou que não consegue morrer. Uma morta-viva no filme de O’Bannon responde por que motivo devoram os humanos: “Porque isso reduz a dor... a dor de estar morto”. É uma explicação de roteirista de filme B, que coça a cabeça por 10 minutos e resolve com uma frase a questão da “motivação dramatúrgica”. Mas é uma angústia metafísica semelhante à do Mr. Valdemar do conto de Edgar Allan Poe, que, hipnotizado, fica com a alma presa ao corpo morto, mantendo-o em funcionamento. No momento em que o transe hipnótico é cortado, a alma se liberta e o corpo se desfaz numa massa liquefeita.
E por último vem o simbolismo do ato de comer cérebros. Um filme é uma projeção luminosa de pessoas sem vida que andam pra lá e para cá absorvendo os cérebros da platéia para continuar existindo.