Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
terça-feira, 9 de novembro de 2010
2396) O racismo e Monteiro Lobato (9.11.2010)
Comentei aqui nesta coluna a recente polêmica envolvendo o livro de Monteiro Lobato, Caçadas de Pedrinho. Leitores se queixaram do modo desrespeitoso como a personagem negra, Tia Nastácia, é tratada em certos momentos. Quem leu Lobato sabe que a toda hora a boneca Emília chama a cozinheira do Sítio do Picapau Amarelo de “negra beiçuda”, “negra burra”, etc. É a única que a trata assim: a avó Dona Benta, os netos Pedrinho e Narizinho, todos tratam Tia Nastácia de modo mais respeitoso. Em todo caso, é compreensível que o MEC decida “exigir da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura.”
Pipocaram comentários na Internet dizendo que o livro tinha sido censurado e proibido pelo Governo. Não foi o caso. (Quem quiser mais detalhes pode consultar este blog, que transcreve longos textos do parecer do MEC: http://tinyurl.com/3a3gg9c). Mas esse episódio mostra um grave problema existencial de entidades como o Governo, a Igreja, a Academia, as Escolas, etc. São entidades abstratas organizadas em função de um tipo ideal de comportamento.
Um escritor pode ter personagens racistas, machistas, drogados, criminosos, porque um escritor trabalha com o mundo real e não tem remédio senão descrevê-lo como ele é. As escolas e os governos, contudo, trabalham há séculos com um conceito de mundo real que na verdade é um mundo ideal, o “mundo como deveria ser”, o mundo que tentamos ensinar aos nossos filhos, cheio de valores éticos, regras de comportamento, etc. e tal. São entidades normativas, que pregam uma maneira de ser. A arte (ou pelo menos a maior parte dela) é contraditória, não prega maneira de ser; alardeia suas próprias dúvidas, tentações, descreve o ser humano com todos os seus defeitos.
Nos EUA, todo mês aparece uma biblioteca pública tirando de catálogo os livros de Harry Potter porque a família de uma criança, evangélica, denuncia que a biblioteca está pregando o culto à feitiçaria. E quando algum funcionário tenta conciliar, eles perguntam: “Vocês estão com quem – com Jesus Cristo, ou com Satã?”. Agora imagine se um leitor assim encontrasse na biblioteca livros de Henry Miller, Nelson Rodrigues, Chuck Palahniuk ou Dalton Trevisan!
Voltando a Lobato: seus livros podem trazer para uma criança uma tal quantidade e variedade de coisas positivas que nada perderão com um prefácio ou posfácio que coloque seus momentos racistas num contexto. Inclusive para mostrar que até mesmo pessoas progressistas, como ele foi em vários sentidos, também podem ser preconceituosas. Como diria o Conselheiro Acácio, “ninguém está isento de seus próprios defeitos”. Admiramos tanto os escritores que criamos para eles uma imagem meio “chapa branca”, de um Fulano sem defeitos. É bom poder enxergar a pessoa por trás dos livros.