Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sábado, 30 de outubro de 2010
2387) Os autistas voluntários (30.10.2010)
Greg Egan, um dos grandes escritores da FC de hoje, colocou um capítulo sobre o autismo em seu romance Distress (1995). O tema do livro é outro, e o autismo só aparece no capítulo 6, numa entrevista feita pelo protagonista, um jornalista investigativo. Ele dá voz a um personagem, James Rourke, pertencente a um grupo chamado Associação dos Autistas Voluntários (a história se passa em 2055). Nesse futuro hipotético, foi descoberta uma área do cérebro chamada “área de Lamont”, e se postula que o autismo resulta de uma lesão produzida nessa área por uma variedade de razões. O mais interessante do caso, no entanto, é a existência da própria associação. Descobertas as causas do autismo, esses autistas não querem ser curados. Preferem permanecer do jeito que são.
Diz James Rourke que a mente humana desenvolveu ao longo de milênios de evolução uma capacidade para compor modelos das outras mentes. Somos capazes de imaginar o que os outros estão pensando ou sentindo. Somos capazes de nos identificar com esses sentimentos, desenvolvendo um senso de intimidade, ou de empatia. A evolução foi fortalecida pelos laços monogâmicos que os homens criaram com suas companheiras. Intimidade, empatia e amor são três aspectos básicos do nosso quadro de valores emocionais.
O que ocorre quando um indivíduo – um autista – é incapaz de produzir esses modelos de outras mentes? Segundo o personagem, esse talento não passa, na verdade, de um talento para a auto-ilusão. As pessoas na verdade não sabem o que as outras pensam ou sentem: elas apenas imaginam saber. E como é necessário, por razões evolutivas, que sejamos capazes de manter essa ilusão, que “dá liga” a nossa vida em grupo, somos condicionados a achar que somos capazes de empatia e de compreensão, mesmo quando encontramos provas e mais provas de que isso não ocorre. Mas precisamos dessa ilusão para que a espécie continue evoluindo.
Os Autistas Voluntários do livro não querem alimentar essa ilusão. Eles consideram que não sabem e nunca saberão, intuitivamente, o que se passa nas mentes alheias, e que só podem se relacionar com outras pessoas através de processos mais formais e explícitos, como a linguagem verbal. Para eles, continuar autista é uma recusa a deixar-se enganar. E Rourke faz uma provocação final, ao comparar os Autistas Voluntários com os transexuais. Diz ele que nossa sociedade acha que é justo uma pessoa mudar de sexo para que seu corpo corresponda à sua imagem mental de si mesma. Por que então proibir que pessoas acostumadas a interagir sem emoções, sem empatia, sem intimidade com as outras, mantenham essa condição? Será que mudar de sexo é normal, mas não ter empatia é uma anomalia que precisa ser curada? Um autista pode viver sem abraços, sem olho-no-olho, sem demonstrações de afetividade e ainda assim ser querido e respeitado pelas outras pessoas, e sentir-se em paz consigo mesmo. Por que motivo a sociedade quer lhe negar este direito?