Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
2325) Autores que não li: Proust (20.8.2010)
A frase famosa é de Jorge Luís Borges, já não me lembra onde: “Que outros se orgulhem dos livros que escreveram; eu me orgulho dos livros que li”. Bela humildade, a de Borges, mas eu sou mais humilde do que ele, e me orgulho dos livros que não li. Este orgulho eu os divido com os fantasmas dos homens que escreveram esses livros, como se dissesse a cada um deles: “És grande, ó Tetrarca! Eu, que tantos templos já invadi, não me julguei digno sequer de acessar o teu. Tua inteligência é maior que a minha. Agora vai embora daqui, antes que eu perca a paciência e te aplique uns cascudos!” Já dirigi esta reprimenda a Marcel Proust, o dos bigodes encerados, ou, como diz um irreverente amigo meu, “aquele escritor que molhava o biscoito”.
De Proust só li as primeiras 50 páginas de um ou outro livro, e os trechos transcritos em ensaios que devorei de olho atento e caneta em punho, sublinhando para sempre. Deixei-me intimidar pelo tamanho do Em Busca do Tempo Perdido, pelo elenco de centenas de protagonistas e milhares de figurantes. Curiosamente, nunca me intimidei pelo famoso “parágrafo proustiano”, que dura páginas e mais páginas, e cria na sintaxe o que as gravuras de M. C. Escher criam na perspectiva. Isso antes me deleita que me assusta. Meu medo sempre foi ter que interromper a leitura por um mês e depois não conseguir mais distinguir o Marquês Fulano do Barão Sicrano, porque confesso que quando um sujeito ostenta um título eu fico com dificuldade de enxergar o sujeito.
Uma vez vi num sebo carioca um balcão tomado por uma “chegada” recente: cerca de 300 livros de e sobre Proust. Fiquei vendo aqueles volumes em meia dúzia de idiomas, de todos os tamanhos, uns antiquíssimos, outros recentes, e todos mostrando na lombada o recorrente nome. Me bateu então o peso da repercussão de uma obra que é como uma avenida por onde todos têm que passar e eu (ai de mim) nunca passei.
Há cerca de dois anos, num evento literário, encontrei Ariano Suassuna e ficamos conversando num grupo de pessoas. Um comentário de alguém levou Ariano a citar uma frase de Proust, e depois fazer um longo elogio do autor francês. Aí ele virou-se para mim e disse: “Você gosta de Proust?” Era tão fácil dizer que gostava! Mas eu confessei que nunca tinha lido. Ele bateu com a mão na perna e exclamou: “Mas precisa ler! Tem que ler! E nós temos inclusive traduções excelentes, como as de Mário Quintana, por exemplo”. Passou uns cinco minutos elogiando Proust, e eu já estava com uma desculpa na ponta da língua: que são 8 ou 9 volumes, é muita coisa, não tenho tempo... Mas aí Ariano encerrou: “Ave Maria, é tão bom que só de falar está me dando vontade. Ano que vem vou ler tudo de novo”. Quando alguém com mais de 80 anos diz isso, tem que ter um significado. Pra mim (que nunca li Proust) é o seguinte: que enquanto um indivíduo tiver uma alma viva, um cérebro funcionando e um coração batendo, nenhum tempo é tempo perdido.