Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
2323) “A Chinesa” de Godard (18.8.2010)
Este filme é descrito pelos detratores de Jean-Luc Godard como o seu filme mais chato. (Todo detrator de Godard o conhece pouco. Se acham La Chinoise chato, coitados, nunca viram One plus One ou Vent d’Est.) Afinal, que graça pode ter uma hora e meia de filme mostrando meia dúzia de rapazes e moças trancados dentro de um apartamento, falando sem parar? Anos depois, o Big Brother Brasil respondeu esta pergunta: os rapazes e moças teriam que ser “saradões” e “gostosas”, e deveriam conversar apenas o equivalente verbal a Cheetos, M&M ou Potato Chips.
O filme de Godard é um BBB fictício sobre os jovens maoístas que, um ano depois (o filme é de 1967) encheriam Paris de carros com os pneus para cima, barricadas, coquetéis Molotov e slogans incendiários. Quando vi A Chinesa pela primeira vez, em 1970, tive reações contraditórias. Um terço das palavras-de-ordem dos jovens maoístas eu não compreendia, absolutamente. Um terço eu renegava de corpo e alma. E um terço eu concordava com fervor. Não sei se cometerei a obviedade retórica de afirmar que hoje, quarenta anos depois, tive as mesmas reações, mudando apenas as palavras-de-ordem que as provocavam. (Não; melhor não dizer.)
Minha ingenuidade de cineclubista adolescente, na época, consistia em imaginar que Godard era maoísta e que o filme era uma apologia do que aqueles rapazes e moças estavam fazendo. Hoje, minha surpresa é que Godard não tenha sido explodido, por um homem-bomba maoísta, no dia seguinte à pré-estréia. Seu retrato dos jovens adoradores do Livro Vermelho é tão impiedoso quanto o que ele faria hoje sobre os participantes do Big Brother Brasil (que coisa, maoísmo e BBB continuam voltando juntos ao meu juízo!). Há detalhes tão impagáveis e irônicos que os considero injustos. Não é possível que jovens sensatos defendessem tais idéias. Mas é possível, sim. Tudo, quase tudo, é possível.
O humor de Godard. Um dos jovens pega um guidom de bicicleta, coloca-o na cabeça como um par de chifres, e encena uma tourada, brincando. Depois, joga o guidom no lixo; um vizinho o apanha e diz: “Que belo guidom de bicicleta!”. Ele comenta, maravilhado: “Os operários são criativos. Ele transformou um touro num guidom de bicicleta!”. Precisa mais? Véronique vai a um prédio para assassinar um diplomata soviético (os maoístas odeiam os soviéticos mais do que odeiam os capitalistas). Quando volta, percebe que confundiu o ap. 32 com o 23 e matou a pessoa errada; volta e mata a pessoa certa. Precisa mais?
Ainda assim, Godard consegue ver nesses rapazes e moças maoístas o que eles de fato são: rapazes e moças. Eram maoístas como poderiam ser qualquer outra coisa que lhes desse a sensação de que estavam vivos, de que o que faziam tinha importância para o mundo, de que estavam vivendo uma grande aventura, de que a vida era bela, e de que “se o marxismo-leninismo existe, tudo é permitido”. Hoje, tudo é permitido porque ele não existe mais.