sexta-feira, 28 de maio de 2010

2084) Um fato fantástico (12.11.2009)




H. G. Wells afirmou certa vez que uma história sobre um porco capaz de voar por cima das cercas era fantasia, mas se todos os porcos pudessem fazer o mesmo passava a ser outra coisa. 

Wells não definiu (pelo menos na citação que li) que outra coisa seria essa, mas talvez sua frase tenha sugerido a Anthony Boucher, um dos melhores críticos norte-americanos de FC (responsável pela primeira tradução de Borges nos EUA, em 1948) uma importante recomendação: 

“O autor tem direito a uma única premissa fantástica, que dará origem a toda a sua história. Ele pode usar uma pessoa capaz de atravessar paredes, mas não pode usar na mesma história outra pessoa que é invisível”. 

Um conselho perceptivo e sensato, embora grande parte da FC e da Fantasia contemporâneas se obstine em desobedecer a ele.


Wells escreveu romances sobre um homem invisível, uma máquina do tempo, marcianos invadindo a Terra, um médico que tenta transformar animais em seres humanos. Qualquer um desses livros é um primor de narrativa. Fico imaginando que salada seriam se o autor tivesse tentado escrever sobre um médico que tenta transformar animais em seres humanos invisíveis, ou sobre marcianos que invadem a Terra utilizando máquinas do tempo. 

Cada premissa fantástica estabelece uma “quebra” com o realismo narrativo. Cada uma propõe um mundo semelhante ao nosso com exceção de um aspecto, e apenas um. Quando os aceitamos, o restante da narrativa decorre numa espécie de comparação constante entre o mundo como o conhecemos e essa outra direção narrativa sugerida por aquele detalhe. 

Postular dois deles ao mesmo tempo é bifurcar a atenção do leitor, pedindo-lhe que vire ao mesmo tempo duas esquinas opostas, que aceite a existência de dois elementos improváveis e, mais do que isto, heterogêneos. É pedir-lhe que olhe em duas direções ao mesmo tempo.


Pego como exemplo um livro que tem esse defeito (não obstante ser um bom livro, envolvente, bem escrito), um dos meus preferidos na adolescência: O Dia das Trífides de John Wyndham (1951), que tem dois elementos fantásticos. 

O primeiro é a existência das trífides, plantas inteligentes, capazes de se mover sobre três “pernas” e dotadas de um aguilhão venenoso, que são uma ameaça para os seres humanos. Por sorte as trífides não enxergam. 

O segundo elemento fantástico é a ocorrência de uma chuva de meteoros que dura uma noite inteira. Na manhã seguinte, todas as pessoas que os contemplaram estão cegas. E então os seres humanos e as trífides ficam em igualdade de condições. 

Duvido que José Saramago não tenha lido a mesma edição que li (Colecção Argonauta, Lisboa), nos anos 1960, e que o livro de Wyndham não tenha inspirado seu Ensaio sobre a cegueira

O Dia das Trífides é um ótimo romance de FC sob vários critérios, e seu único defeito é a ocorrência de duas premissas fantásticas tão distantes (plantas inteligentes, cegueira coletiva) e tão convenientes para o autor. Bastaria uma.













2083) Nossos avatares (11.11.2009)



(Thomas Frey)

Os autores de FC e os jornalistas especulativos costumam se indagar até onde irá nossa capacidade de criar avatares de nós mesmos. Réplicas eletrônicas capazes de reconstituir nossa personalidade e de nos representar em público. Eu sou um conservador nato e não creio que será possível produzir um sósia holográfico de mim mesmo capaz de me substituir em tarefas como fazer o supermercado ou cortar o cabelo. Pra mim, o mundo feito de matéria só pode ser acessado por quem é de matéria, e ponto final. Mas admito que a expansão dos avatares ocasionará também (num processo cumulativo de causa e efeito) a expansão de um mundo em que esses avatares possam atuar.

Um dos otimistas é Thomas Frey, que num artigo online em http://www.futuristspeaker.com/2009/05/the-future-of-the-avatar/, intitulado “O Futuro do Avatar”, sugere: “Assim que um avatar passar pela metamorfose radical de uma imagem vista na tela para um ser tridimensional que nos acompanha no jantar, conduz conversações com nossos amigos e pode nos substituir numa reunião, começará o trabalho para produzir um avatar ainda mais realista, um que poderemos tocar fisicamente”. Creio que seja possível a projeção holográfica (como nos livros de William Gibson) de uma pessoa virtual, luminosa, semitransparente, capaz de aparecer (graças a projetores) andando entre os transeuntes de uma calçada, entrando num restaurante, sentando-se à mesa, ouvindo (porque microfones próximos captam as frases e as retransmitem para a “Central”) as perguntas que as pessoas de carne e osso lhe fazem, e respondendo-as (através de um software verbal, e de pequenos altofalantes estrategicamente colocados). Isso deve dar um trabalhão danado para realizar, e vai requerer alguns bilhões de terabytes (“uma Antártida de informação”, diz Gibson).

Não creio na possibilidade de um avatar informático capaz de apanhar e levar consigo uma folha de papel, girar a maçaneta de uma porta real, guardar uma moeda no bolso... O que podemos é produzir um andróide de carne-e-osso sintéticos, em cujo cérebro há um HD de alguns petabytes de memória recebendo em tempo real tudo que se passa em nossa mente. Desse modo, eu posso estar na minha casa, no Rio, descansando em meu quarto, enquanto meu avatar caminha pelas ruas de Campina Grande, cumprimenta pessoas, entra no sebo Cata-Livros para conversar miolo-de-pote com Ronaldo e pagar pelos livros com dinheiro virtual.

Qual a utilidade de avatares assim? Mandá-los à guerra para morrer em nosso lugar? Parece a piada do português que um dia estava sentado à beira da via férrea, distraiu-se, e o trem passou por cima da perna dele. Ele juntou dinheiro, um milhão de escudos, e implantou uma perna artificial. Aí noutro dia estava sentado de novo com as duas pernas em cima do trilho quando alguém gritou: “Manuel, lá vem o trem!”. Precavido, ele deixou sobre o trilho a perna de verdade e afastou a outra, murmurando: “Esta aqui me custou foi um milhão de escudos...”

2082) “Distrito 9” (10.11.2009)



O filme sul-africano Distrito 9, em cartaz na Paraíba, é um mix de novidade e clichê, crítica social e cinema descerebrado. Tem sido elogiado pela crítica como uma revolução no cinema de ficção científica. Gostei do filme, com muitas ressalvas. Ao que parece, ele surgiu de um curta-metragem, cujo sucesso levou o produtor/diretor Peter Jackson a bancar a sua transformação num filme longo, com toda a estrutura. Talvez aí tenham começado os seus problemas.

Distrito 9 começa com uma imagem que, criada por Arthur C. Clarke em O Fim da Infância, rapidamente está virando clichê, tendo sido usada com mais impacto no famoso (e medíocre) Independence Day: uma imensa nave alienígena estacionada no espaço, imóvel e silenciosa, sobre uma grande cidade. No presente caso é Johannesburgo, a cidade do apartheid, e todo o filme é uma alegoria óbvia (mas não menos eficiente ou menos interessante por isso) sobre o modo como os negros foram tratados na África do Sul. Assim como ocorreu com eles, os alienígenas (que estão enfraquecidos, quase à morte) são recambiados para um curral-favela onde passam a morar.

A primeira metade do filme é excelente, resumindo uma situação complexa através de uma linguagem de jornalismo televisivo, com entrevistas, depoimentos, imagens de arquivos. Os ETs estão isolados numa favela na periferia da cidade, mas ninguém os quer por ali, nem mesmo os negros. O governo vai fazer a remoção dos milhares de ETs, derrubar seus barracos, para que eles vão morar num lugar bem longe, onde ninguém os veja – como nós aqui no Brasil tratamos os Sem-terra, os Sem-teto e outras espécies alienígenas.

Lá pelo meio do filme o protagonista, um típico “afrikaner” (descendente dos colonizadores brancos) se deixa contaminar casualmente por um líquido que encontra no barraco de um ET e começa a se transformar num deles, por um processo que não fica muito claro em momento algum. Isto empurra o filme para o reino da pulp fiction deslavada, onde a verossimilhança científica é o que menos importa, e os fatos acontecem de acordo com a conveniência dramatúrgica do autor. Daí em diante o filme vira um bang-bang comum, com perseguições, escapadas, tiros, muitos tiros, explosões, muitas explosões, e vai descendo pouco a pouco ao nível de um Independence Day ou Transformers qualquer.

É um mau filme? De jeito nenhum. Está cheio de pequenas sacadas brilhantes, de situações bizarras e plausíveis, de uma crítica social feita menos por ideologia do que por vivência, ou seja, uma crítica que se aprende a fazer nas ruas, e não nos livros. A narrativa da parte inicial mostra como é possível comprimir muita informação e um enredo complexo em pouco espaço; pretendo comprar um novo ingresso só para rever esta parte. Distrito 9 é excelente quando é um filme da África do Sul, e perde qualidade quando tenta ir atrás do que o cinema americano tem de mais bobo: tiros, muitos tiros, e explosões, muitas explosões.