H. G. Wells afirmou certa vez que uma história sobre um porco capaz de voar por cima das cercas era fantasia, mas se todos os porcos pudessem fazer o mesmo passava a ser outra coisa.
Wells não definiu (pelo menos na citação que li) que outra coisa seria essa, mas talvez sua frase tenha sugerido a Anthony Boucher, um dos melhores críticos norte-americanos de FC (responsável pela primeira tradução de Borges nos EUA, em 1948) uma importante recomendação:
“O autor tem direito a uma única premissa fantástica, que dará origem a toda a sua história. Ele pode usar uma pessoa capaz de atravessar paredes, mas não pode usar na mesma história outra pessoa que é invisível”.
Um conselho perceptivo e sensato, embora grande parte da FC e da Fantasia contemporâneas se obstine em desobedecer a ele.
Wells escreveu romances sobre um homem invisível, uma máquina do tempo, marcianos invadindo a Terra, um médico que tenta transformar animais em seres humanos. Qualquer um desses livros é um primor de narrativa. Fico imaginando que salada seriam se o autor tivesse tentado escrever sobre um médico que tenta transformar animais em seres humanos invisíveis, ou sobre marcianos que invadem a Terra utilizando máquinas do tempo.
Cada premissa fantástica estabelece uma “quebra” com o realismo narrativo. Cada uma propõe um mundo semelhante ao nosso com exceção de um aspecto, e apenas um. Quando os aceitamos, o restante da narrativa decorre numa espécie de comparação constante entre o mundo como o conhecemos e essa outra direção narrativa sugerida por aquele detalhe.
Postular dois deles ao mesmo tempo é bifurcar a atenção do leitor, pedindo-lhe que vire ao mesmo tempo duas esquinas opostas, que aceite a existência de dois elementos improváveis e, mais do que isto, heterogêneos. É pedir-lhe que olhe em duas direções ao mesmo tempo.
Pego como exemplo um livro que tem esse defeito (não obstante ser um bom livro, envolvente, bem escrito), um dos meus preferidos na adolescência: O Dia das Trífides de John Wyndham (1951), que tem dois elementos fantásticos.
O primeiro é a existência das trífides, plantas inteligentes, capazes de se mover sobre três “pernas” e dotadas de um aguilhão venenoso, que são uma ameaça para os seres humanos. Por sorte as trífides não enxergam.
O segundo elemento fantástico é a ocorrência de uma chuva de meteoros que dura uma noite inteira. Na manhã seguinte, todas as pessoas que os contemplaram estão cegas. E então os seres humanos e as trífides ficam em igualdade de condições.
Duvido que José Saramago não tenha lido a mesma edição que li (Colecção Argonauta, Lisboa), nos anos 1960, e que o livro de Wyndham não tenha inspirado seu Ensaio sobre a cegueira.
O Dia das Trífides é um ótimo romance de FC sob vários critérios, e seu único defeito é a ocorrência de duas premissas fantásticas tão distantes (plantas inteligentes, cegueira coletiva) e tão convenientes para o autor. Bastaria uma.