Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
segunda-feira, 26 de abril de 2010
1960) Como um tatu age (20.6.2009)
Um amigo meu, que tem o cacoete mental dos trocadilhos infames, explicou-me que a palavra “tatuagem” tem sua origem etimológica no fato de que as agulhas motorizadas dos tatuadores agem na nossa pele como se fossem um tatu, cavando, rasgando, destruindo. Ver esses ornatos epidérmicos me produz admiração e calafrios. Mesmo quando o resultado é bonito (e muitas vezes é tenebroso) imagino o sofrimento que exigiu, e o caráter irremediável da mudança. Sobre este último aspecto, procurem no meu blog (http://mundofantasmo.blogspot.com) a crônica “Pikachu Metallica”.
Usar o próprio corpo como superfície para obras de arte visual é uma tradição antiga, mas a sociedade moderna acelerou muito este processo nos últimos vinte anos. É impressionante a quantidade de gente se desenhando por aí. Isto tem dado ao Brasil de hoje um ar de ficção científica, porque a FC usou com frequência esse recurso ao imaginar mundos futuros. Até parece que os escritores de FC percebiam uma espécie de demanda reprimida no que diz respeito a modificações do corpo, e projetavam em seus escritos esse imaginário que acabou surgindo mais cedo do que eles próprios supunham.
A tecnologia do futuro próximo pode ajudar a propagar esse hábito. Pessoas que, como eu, recuam diante da irreversibilidade de uma tatuagem poderão ter alternativas. Seria possível recolher amostrar do DNA de um sujeito e produzir, em laboratório, “emplastros” de pele idêntica à dele, que poderiam ser implantados em qualquer local do corpo, e com qualquer extensão, sem sofrerem a rejeição que se dá com órgãos transplantados. Acredito que a genética de hoje permite isto, e a pesquisa de células-tronco pode tornar mais fácil e mais barata a produção desses “excedentes epidérmicos”. Colados sobre a pele original, seriam eles a superfície a receber a tatuagem. Se anos depois o cara mudasse de idéia, era só extirpar a pele implantada e restaurar a anterior.
No clássico Neuromancer, de 1984, William Gibson diz: “Com as mãos nos bolsos do casaco, Case olhou, através do vidro, para um losango achatado de pele produzida em laboratório que jazia sobre um pedestal de imitação de jade. A cor de sua pele trouxe a sua memória a pele das prostitutas de Zona; ela estava tatuada como uma imagem digital luminosa, conectada a um chip subcutâneo. Ele pensou: é mesmo, para que se dar o trabalho de uma cirurgia, quando a gente pode levar qualquer tatuagem no bolso?”
Recursos tecnológicos para produzir isto provavelmente já existem. O que não existe ainda é demanda da moda e investimento logístico. No dia em que pessoas começarem a chegar nas festas com tatuagens luminosas sobre (ou sob) a pele, e cada dia chegarem com uma tatuagem diferente, todo mundo vai querer uma igual. Daí a pouco surgirão festas black-out em que o ambiente da buate será iluminado apenas pelos “displays” multicores das tatuagens da galera que está dançando. Esperem, e verão.
1959) O gênio e o caos (19.6.2009)
Leonardo da Vinci é considerado um gênio por causa de suas pinturas e de suas descobertas científicas e tecnológicas. E no entanto isto representa uma fração ínfima do que ele fez em vida.
Leonardo encheu de anotações centenas de caderninhos que ele mesmo fabricava e levava consigo para toda parte. A tradução e publicação desse material tem sido um passatempo de pesquisadores, há séculos.
Leonardo produziu uma dúzia de obras de grande porte e milhares de pequenos fragmentos, anotações, lembretes, começos de obras que nunca eram concluídas. Foi chamado “o rei da procrastinação”, da arte de interromper uma tarefa urgente para se dedicar a uma trivialidade qualquer, uma atividade sem importância.
Num ensaio famoso a seu respeito, “Leonardo da Vinci e uma Recordação da Infância”, Freud analisou essa fragmentação da atenção intelectual de Leonardo, relacionando-a com traumas de infância, a ausência do pai, fixação erótica na mãe, etc.
A análise de Freud é brilhante e pesquisadíssima (ele dá sempre a impressão de ter lido tudo sobre o assunto). Mas um artigo recente de W. A. Pannapacker (em: http://tinyurl.com/dmj74r) sugere que, independentemente de sua origem, a procrastinação e o gênio de Leonardo eram uma e a mesma coisa.
Para ele, “a mediocridade produtiva requer um tipo banal de disciplina, porque é segura e não ameaça ninguém”. E essa mediocridade é o contrário do que chamamos “gênio”.
Ser medíocre é ser capaz de executar, no tempo adequado, tarefas banais. “Mas o gênio”, diz ele, “é descontrolado e incontrolável. Não se produz uma obra de gênio de acordo com um cronograma ou um projeto. Como Leonardo bem sabia, as obras de gênio surgem através de inspirações aleatórias que resultam de combinações imprevistas”.
A definição é brilhante porque mostra o terreno perigoso onde caminha o gênio. A mediocridade acerta em 99% dos casos. O gênio tem a probabilidade de errar numa proporção semelhante.
O gênio é sempre um risco, porque é uma entrega ao caos criativo, ao improviso, ao imprevisto, ao descontrole. É quase certo que dê com os burros nágua. Quando, por uma feliz combinação de circunstâncias, tudo se encaixa satisfatoriamente, temos a “Mona Lisa” ou a “Última Ceia”.
O gênio não elimina a necessidade de preparação, trabalho árduo, estudo. Mas tudo isso é voltado numa direção imprevisível, geralmente (no caso da criação artística e da descoberta científica) tomando caminhos por onde ninguém se aventurou antes.
Diz Pannapacker:
"A vida acadêmica está cheia de gênios em potencial que nunca realizaram o que queriam porque havia muitas coisas a fazer primeiro: projetos de pesquisa, preparação de conferências, livros, artigos... Nada disto foi livremente escolhido. (...) A procrastinação revela as coisas para as quais temos um verdadeiro dom. Ela nos arrasta para as coisas que, de fato, queríamos fazer”.
1958) É permitido proibir (18.6.2009)
Houve um tempo em que nas revistas masculinas as fotos de mulheres nuas só podiam mostrar um mamilo. Se fossem dois, a foto seria proibida. Socorro-me dos psicanalistas: por que um mamilo não é pornográfico, e dois o são? Proibições muitas vezes acabam chamando atenção para o que tentam proibir. O filme Laranja Mecânica esperou anos para ser liberado no Brasil, e quando o foi teve suas cenas de nu acompanhadas por bolinhas pretas ocultando as imagens de “genitália desnuda” que havia no filme. Esta invenção surreal dos censores brasileiros levou muita gente ao cinema só para dar risada, e foi objeto de comentários irônicos em outros países. A cena em que Alex e seus “drugues” arrancam as roupas de uma mulher para estuprá-la – com a vítima nua, correndo atarantada de um lado para o outro – era uma gargalhada só, todo mundo histérico diante do nervosismo da bolinha preta que pulava de fotograma em fotograma, tentando cobrir as partes pudendas da coadjuvante.
São proibições supérfluas, meramente pró-forma, como aquelas estreitas faixas pretas que cobrem os olhos dos “di-menor” nas matérias policiais. Em tese, isto é feito para preservar sua identidade; mas se eu visse qualquer conhecido meu “protegido” por um barramento tão exíguo ninguém me impediria de reconhecê-lo. É como dizer: “O acusado do crime é o menor J.C.F.S., que mora na Rua Rio Azul, número 42, no bairro da Bela Vista”. Belo modo de proteger a identidade de alguém.
A melhor maneira de burlar censuras e proibições é omitir a palavra proibida, mas revelá-la pelo contexto. Como na piada do português, dono de bar, que proibiu que se contassem piadas de português no seu boteco. No dia seguinte, um dos engraçadinhos começou a contar assim: “Era uma vez dois japoneses, um se chamava Manuel, o outro Joaquim...” Artistas fazem isso desde que a censura foi inventada.
A história da Censura no Brasil está cheia de episódios pitorescos, muitos deles ridicularizando a ignorância e a truculência dos censores, como aqueles que queriam mandar prender “um tal de Sófocles” autor de uma peça proibida. Mas talvez a Censura às artes seja o setor em que fica mais claro uma característica das ditaduras que é o modo aleatório como ela se manifesta. Mesmo que adotando métodos aparentemente profissionais e técnicos (torturadores treinados em academias de tortura norte-americanas, etc.) a ditadura é um processo que acontece às cegas, no varejo. Ordens genéricas são baixadas para que seja proibida toda expressão de idéias marxistas-leninistas. Como poucos executantes dessas ordens têm idéia do que seja isto, acabam proibindo e perseguindo às cegas, às tontas, e desse modo não apenas os culpados, mas também os inocentes correm riscos. Foi esse aspecto desinformado e “perdidão” dos próprios perseguidores que Kafka soube captar. Um não sabe por que está sendo preso, e o outro não sabe por que está prendendo.
1957) Os anjos pornográficos (17.6.2009)
Qualquer estudo sobre as relações entre o machismo, a literatura de folhetim e o cristianismo não pode deixar de incluir Nelson Rodrigues e Luís Buñuel como personagens. (Não seriam os únicos, claro – como deixar de fora Rubem Fonseca, Adelino Moreira, Pedro Almodóvar, Carlos Zéfiro, Dalton Trevisan, etc.?) O teatro de um e o cinema do outro são herdeiros do teatro de melodrama e do folhetim do século 19, cuja mentalidade absorveram na infância. Desinformação, tabus, voyeurismo, culpa, pecado... e um desejo sexual maciço, que, segundo Don Luís, não podia ser comparado com nada neste mundo.
Nelson Rodrigues via na arte uma função purificadora: “o personagem é vil para que não o sejamos”. Dizia que as mulheres honestas viam a adúltera no palco e descarregavam através dela suas tentações; era o que bastava para que se mantivessem fidelíssimas. Seu teatro tem a duplicidade permanente que permeia a obra de tantos moralistas: descrevem o pecado com minúcias, e no fim elogiam a virtude.
Coisa parecida ocorre com o cinema de Buñuel, que compartilhava com Nelson a maldição de ter nascido no interior de uma cultura católica, repressiva, em que o sexo era carregado de culpa. Buñuel dizia não gostar dos filmes modernos (dos anos 1960) em que as pessoas tiravam a roupa e copulavam na tela. Isto o desagradava – mas não o impedia de realizar filmes cheios de perversões e depravações contadas indiretamente, como Viridiana ou A bela da tarde.
O sexo, nessas circunstâncias, tem o mesmo poder liberador da blasfêmia. Quando é permitida, a satisfação do desejo sexual é como uma brisa agradável que acaricia, trazendo um misto de alegria e paz. Reprimida, tem a força do ar comprimido capaz de disparar uma bala; ou de um furacão que esperou anos para tirar aquela cidade do meio do seu caminho. A obra desses autores frutos da cultura cristã (mesmo quando se afirmam ateus) é a ponta do iceberg celibatário de homossexualismo e pedofilia em seminários, mosteiros e conventos. O ascetismo é possível, é belo e nobre. Mas aqui pra nós, não é pra todo mundo. Requer uma chama límpida e fria, quase divina, e nós somos (para o bem e para o mal) humanos e “calientes”.
Reprimidos, angustiados e cheios de conflitos, nem Don Luís nem Nelson viveriam em paz no mundo de hoje. A superabundância de bundas na TV e nas capas de revistas os chocaria. Tarados até a medula, eram do tipo para quem o excesso de nudez física é um entrave à fantasia mental. O que os excitava não era propriamente tocar a carne feminina, mas, de certo modo, possuir a mente da parceira, dobrá-la aos seus desejos, arrastá-la ao pecado conjunto. Como no velho bolero cantado por Dalva de Oliveira (“Querido!... / Eu tenho um pecado novo / e quero pecar contigo...”), seu desejo era o de ser seduzido e de seduzir, o de pecar e arrastar para o pecado, o de raptar uma parceira e conduzi-la de volta ao Jardim da Serpente.