Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
quarta-feira, 14 de abril de 2010
1910) O efeito Kulechov (23.4.2009)
Há uma figura retórica em filosofia a que se chama informalmente de “postoquismo”, porque vem da expressão latina “post hoc ergo propter hoc”. Isto quer dizer mais ou menos: “Se foi depois disto, então foi causado por isto”. Às vezes vemos dois fatos acontecerem um depois do outro e imaginamos que o segundo foi causado pelo primeiro. Se a Abolição da Escravatura foi em 1888 e a Proclamação da República foi em 1889, isto não quer dizer que uma foi causa e a outra foi efeito. (Na verdade, ambas foram efeitos de um conjunto de causas mais complexas).
Nossa mente tem uma tendência para fabricar causalidades onde existe apenas sucessão. A montagem cinematográfica tem um exemplo clássico, que se chama “efeito Kulechov”, nome do cineasta que o criou. Kulechov foi um dos primeiros a compreender que a sucessão de imagens na tela leva a mente do espectador a praticar uma associação de idéias, “fundindo” essas imagens numa idéia mais complexa que não estava contida em nenhuma delas isoladamente. Assim como nossa retina funde várias imagens estáticas sucessivas, num movimento virtual que só existe em nosso cérebro, nossa imaginação cria laços entre as imagens pelo simples fato de vê-las juntas.
A experiência de Kulechov foi basicamente de pegar a mesmíssima imagem de um ator, e montá-la com imagens, respectivamente, de um prato de comida, uma pessoa morta e uma jovem deitada na cama. Os espectadores viram no rosto do ator expressões diferentes: fome, tristeza e ternura – mas a expressão era a mesma, pois era a mesma imagem.
Jorge Luís Borges tem um ensaio famoso, “A Muralha e os Livros”, sobre o imperador chinês Shih Huang Ti, que teria mandado construir a Grande Muralha da China, e teria também mandado queimar todos os livros escritos antes do seu reinado. Borges examina de vários ângulos este relato e a certa altura diz: “Também poderíamos supor que erigir a muralha e queimar os livros não tivessem sido atos simultâneos. Isto (conforme a ordem que escolhêssemos) nos daria a imagem de um rei que começou destruindo e depois se resignou a conservar, ou a de um rei desenganado, que destruiu o que antes defendia”.
Nossa mente fabrica essas conexões, impondo sentido a uma sucessão de fatos que muitas vezes não têm a menor ligação. Fazemos isto desde bebês, para sobrevivermos, para perceber continuidade entre os fatos. Um belo dia percebemos que aquelas dezenas de seios são um só seio. Percebemos que aquelas mulheres com rostos que parecem diferentes, com vozes, roupas, cheiros diferentes são sempre a mesma. Esses pequenos triunfos intelectuais nos dão, com um ou dois anos, nossa primeira sensação de onipotência, quando acordamos de manhã e reconhecemos o lugar onde estamos. Não importa se algumas dessas conexões são erradas; se não fizesse isto o tempo todo, nosso cérebro se diluiria. Os estímulos que recebemos podem ser caóticos. Nossa mente é um processo Kulechov permanente, impondo sentido ao mundo mesmo quando ele não tem.
1909) Duas flechas no ar (22.4.2009)
Um artigo de William Langewiesche na revista Vanity Fair procura dar um balanço, depois que a poeira assentou, nos fatos que conduziram ao acidente entre um Boeing da Gol e um avião Legacy pilotado por dois norte-americanos, em 2006. Foi um dos maiores acidentes aéreos já ocorridos no Brasil, e tornou-se ainda mais grave porque a culpa acabou sendo dividida entre os controladores de vôo brasileiros (mal pagos, mal preparados, estressados, etc) e os dois norte-americanos, que pilotavam de forma talvez descuidada um jatinho de luxo destinado a executivos de multinacionais. O avião da Gol, com seus cento e tanto passageiros, foi a vítima azarada dos erros e descuidos cometidos por esses dois grupos de técnicos.
Não discutirei aqui a respectiva percentagem de culpa que cabe a cada um, mas transcrevo um comentário feito pelo jornalista no parágrafo final de seu artigo, que pode ser encontrado aqui: http://www.vanityfair.com/magazine/2009/01/air_crash200901?currentPage=all. Diz ele, ao recordar sua conversa com os índios caiapós, sobre cuja reserva o acidente ocorreu:
“Em última análise, o acidente nos leva a avaliar um paradoxo associado ao progresso e aos tempos modernos. Falei aos caiapós para levarem em conta que em todo o céu por sobre aquela floresta havia apenas aqueles dois aviões no ar. Era como se num espaço do tamanho da aldeia caiapó – não, mais do que isto, um espaço que se estendesse até a rodovia – índios disparassem duas flechas na direção um do outro, e as flechas se chocassem. Quais eram as probabilidades de algo assim acontecer? No passado, jamais aconteceria. Mesmo se tivessem sido guiadas para a mesma rota aérea, as ‘flechas’ teriam passado uma pela outra, devido à falta de exatidão inerente ao voo. Mas agora foram inventadas ‘penas’ mais aperfeiçoadas, e isto se tornou um requisito obrigatório para aeronaves que voam em alta velocidade. Como resultado disto, as novas flechas voam com uma exatidão espantosa, o que permite que uma quantidade muito maior delas esteja cruzando os céus ao mesmo tempo, mas com uma dependência muito maior nos sistemas interligados que controlam esses voos. O céu continua grande, como sempre foi, mas a margem de erro se estreitou. E quando os sistemas falham? Foi isto que aconteceu sobre a terra dos caiapós. O paradoxo envolvido no caso foi: exatidão. Erros foram cometidos, o Diabo interferiu, e as duas flechas bateram de frente”.
Os erros neste caso foram todos humanos, e não do equipamento. Os pilotos esqueceram de ligar o transponder, os controladores entenderam mal ou transmitiram mal as informações, etc. Quando os humanos cometem erros, nossa solução é criar “máquinas que não erram” (como se isto pudesse existir) e colocá-las no lugar dos humanos. Não lhes ocorre preparar melhor os humanos, dar-lhes melhores salários, melhor treinamento, maior disciplina, cargas horárias compatíveis com a intensidade do trabalho que executam.
1908) Dez grandes canções de Roberto (21.4.2009)
O Rei Roberto Carlos faz 50 anos de carreira. A imprensa fica pedindo listas das dez melhores canções. Difícil escolher. É como tomar um copo de água gelada num sábado de sol e alguém de prancheta em punho nos perguntar quais foram as dez melhores gotas. Mas o leitor gosta de comprar. Cheio de esperança, alinho-me entre os vendedores. E aqui vão dez, sem ordem de valor.
Primeiro, “O Calhambeque”, uma fascinante mistura do cantado com o falado, precursora de tantos “raps” de 30 anos depois, e com um irresistível “bip-bip!” para a platéia repetir em uníssono. Por trás, a chuckberryana saga urbano-adolescente do rapaz que, sartreanamente, só existe ao volante de um carro, nem que seja uma fubica. Depois, “Quero que vá tudo pro inferno”, que abre com um órgão arrebatador, um vocal lancinante, uma letra irreverente para a época. Uma canção pro cara cantar bêbado, de madrugada, embaixo da janela da respectiva, no melhor estilo “venha senão eu morro”.
Canções de amor são o forte do Rei, e aqui vai uma trinca de ases. “Como é grande o meu amor por você”, “Quase fui lhe procurar” (Getúlio Cortes) e “Ninguém vai tirar você de mim” (Edson Ribeiro & Hélio Justo) são canções que toco e canto desde que o vinil que as imortalizou ainda estava quente. Há outras melhores? Talvez. Mas estas são as minhas. Para complementar, o clássico “Detalhes”, sobre a qual já correu um itapemirim de tinta e não preciso comentar.
O Rio descobriu, num show de Caetano Veloso, que a pequena obra-prima “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos” tinha sido composta por Roberto para ele, durante o exílio. É engraçado. Na época, todo mundo sabia disso. Só posso atribuir tal surpresa à faixa etária de imprensa atual. Outra canção-de-amigo que virou hino foi “Amigo”, para Erasmo Carlos, que mostra um lado importante das músicas de RC: a verdade autobiográfica. Eu, que tanto louvo o “Eu poético distanciado”, tiro aqui o chapéu para o poeta cujo Eu é geralmente ele mesmo.
Já vamos em oito, e até agora só falei títulos óbvios! Vou completar a lista com duas músicas que ninguém conhece ou lembra. Uma delas é “Do outro lado da cidade” (Helena dos Santos): “A cidade agora / do outro lado tem / alguém que vive sem saber / que eu vivo aqui também...”, com uma melodia simples e tocante. Uma canção de distância urbana, de jovem sozinho, sem paradeiro e sem amor, numa cidade sem sol que poderia ser a Seattle de Kurt Cobain ou a Detroit de Eminem. A outra é “Nasci para chorar”, versão de Erasmo para uma canção italiana: “Eu levo a minha vida chorando pelo mundo / talvez até tivesse algum desgosto profundo / procuro na memória, procuro me lembrar / mas eu não posso – nasci para chorar...” É uma canção dilacerada, adolescente, pessimista, mas de um pessimismo “pra cima”, revoltado, sem submissão ao Destino, o pessimismo rock-and-roll de quem diz “morro, mas morro atirando”. Acabou a lista? Mas rapaz, eu ainda tinha uma quarenta!
1907) Um réptil ao volante (19.4.2009)
São duas coisas muito parecidas: um sujeito ao volante de um automóvel, e um sujeito ao teclado de um computador. E ficam mais parecidos ainda quando o que eles estão fazendo ali começa a ser atrapalhado – a máquina recusa-se a funcionar, ou alguém de fora interfere no que ele está fazendo. Existe coisa mais exasperante do que clicar um comando e nada acontecer? Existe tortura pior do que uma conexão lenta, ou que cai com frequência? Existe maior tormento do que uma tela congelada à nossa frente, sobre a qual ficamos passeando às tontas um cursor transformado em ampulheta?
É nisso que penso quando contemplo à distância o desespero dos motoristas no trânsito. É o engarrafamento que deixa o sujeito trancado por todos os lados, como Amir Klink na Antártida, tendo que esperar que o degelo do verão faça os carros à sua volta se moverem, permitindo que ele vá embora. É a raiva cega e homicida contra o descuidado que bloqueou seu carro no estacionamento e foi embora. É o dedo impaciente premindo a buzina sem parar, para que o décimo carro lá na frente, o mais próximo ao sinal de trânsito, perceba que ele ficou verde. É o palavrão histérico contra o imbecil que não ligou a sinaleira; é o revólver em punho contra o agressor que lhe deu uma fechada.
Artefatos tão high-tech quanto um automóvel e um computador parecem ser destinados ao nosso neo-córtex cerebral, a parte mais evoluída do nosso cérebro, que lida com linguagens, sistemas, idéias abstratas. Na prática, contudo, quem os manipula é a parte mais ancestral e primitiva do cérebro, o chamado “complexo R”, ou “cérebro reptiliano”, diretamente ligado aos nossos reflexos, nossa atividade motora, nossas respostas instantâneas ao que ocorre no ambiente. (Entre os dois, existe o sistema límbico, ou “cérebro mamífero”, responsável pela afetividade, o gregarismo, as emoções.) É este cérebro reptiliano que nos garante a sobrevivência entre predadores e concorrentes; é ele que durante milhões de anos nos fez, numa fração de segundo, decidir se valia a pena lutar contra uma ameaça ou se era melhor fugir a toda velocidade.
Automóveis e computadores, à medida que se aperfeiçoam, dão respostas cada vez mais rápidas e eficazes aos nossos comandos. Um toquezinho, e ele já obedeceu. Acostumamo-nos com isto, e o funcionamento da máquina vira um extensão de nosso sistema perceptivo e motor. O cérebro reptiliano gosta de ações e reações instantâneas, de controle total, de superação rápida de obstáculos. Por isso os motoristas e internautas ficam tão irritados quando os comandos não lhes obedecem ou quando outros motoristas interferem com sua atividade. O cérebro reptiliano é rápido, interesseiro, competitivo, pensa apenas em executar o mais rapidamente e mais satisfatoriamente possível aquela tarefa. Qualquer contratempo desperta sua ira. Quando rosnamos de ódio diante do volante ou do monitor, é a língua bífida do réptil primitivo que emerge da nossa boca.
1906) “O Quinto Poder” (18.4.2009)
Este thriller de Alberto Pieralisi é um dos filmes brasileiros mais raros e elusivos. Ouvi falar nele pela primeira vez por volta de 1967, e só consegui vê-lo agora, 42 anos depois, no Canal Brasil. A cópia exibida tinha legendas em inglês, e uma advertência de que se tratava da única cópia existente. Ao que parece o filme foi proibido pela Censura do regime militar, e suas cópias foram destruídas ou se perderam.
Ele tem uma premissa de ficção-científica: o controle mental da população através de mensagens subliminares transmitidas pelo rádio e pela TV. Sob o efeito dessa lavagem cerebral imperceptível, o Brasil entrega-se aos saques, à depredação, ao crime, habilmente sugeridos pela montagem de manchetes das páginas policiais de jornais da época (noticiando inclusive o famoso incêndio do circo em Niterói com centenas de mortos) e cenas de passeatas, quebra-quebras, etc.
Os responsáveis pela conspiração (que falam alemão entre si) pretendem com isto assumir o poder num país desorientado e caótico.
[Aqui, o filme completo:
https://www.youtube.com/watch?v=amcp7zgJHyw ]
Em seu blog no Estadão, Luiz Zanin nota as influências hitchcockianas no filme de Pieralisi, como na luta no bondinho do Pão de Açúcar e na cena final em que o chefe dos espiões é perseguido pelo Exército no interior na estátua do Cristo Redentor. As cenas de perseguição (de automóveis, inclusive) têm um dinamismo de encenação, câmara e montagem que era muito raro no cinema brasileiro em 1962.
Do ponto de vista da ficção científica, a realização visual obedece, por economia de tempo e de dinheiro, a todos os clichês dos filmes B dos anos 1950: caixas metálicas cheias de mostradores, luzes piscando, osciloscópios, etc., além de referências tipo “mensagem HRB-350”.
O mais interessante é o conceito em si, porque mensagens subliminares (ou subliminais) são raras no cinema de FC da época, e só em décadas mais recentes foram tratadas a sério, como em Videodrome de David Cronenberg (1982).
Ainda no blog de Zanin há uma informação de Marcelo Miranda de que o produtor Carlos Pedregal, espanhol, dividiu com o italiano Pieralisi a direção do filme, encarregando-se das cenas de ação e perseguição. Isto faz deste filme pioneiro de FC no Brasil uma curiosa “intriga internacional”. Pedregal também teria sido o “marqueteiro” de uma campanha de Adhemar de Barros, e o criador do curioso slogan “Rouba, mas faz” que o político paulista usou desde então.
Essas informações ganham relevo no contexto de um filme cujo tema é a manipulação da mídia para provocar o caos no país e abrir caminho para a tomada do poder por um grupo radical. Um sintoma da convulsão social provocada pelos espiões são as manchetes dos jornais bradando: “Revolução: única saída!”, diante da mortandade desenfreada que campeia no país.
É claro que o governo militar pós-64 se sentiu incomodado com o filme, que, com suas evidentes limitações, é um dos melhores que o Brasil já produziu nesse gênero, e é mais atual hoje do que na época em que foi feito.