terça-feira, 12 de janeiro de 2010

1512) A Infinita Ramificação (17.1.2008)


Um dos meus sonhos recorrentes na infância era o de descer a uma caverna subterrânea e descobrir lá embaixo um salão circular que se abria para infinitas galerias. Cada uma delas desembocava, mais cedo ou mais tarde, num salão mais largo, semelhante na anterior, em cujas paredes eu via aberturas para novas galerias e corredores, “ad infinitum”. O sonho não era um pesadelo, mas me dava, após a excitação inicial de estar descobrindo um mundo desconhecido e misterioso, a angústia de saber que nunca poderia percorrer todos aqueles caminhos.

Meu pai tinha a coleção encadernada, em oito volumes, do Rocambole de Ponson du Terrail (a mesma que hoje, só que em brochura, tenho em minha estante), As folhas de guarda da encadernação eram num papel de cor marrom escura com miríades de pequenas manchas brancas. Eu ficava sentado, com o livro (que naquela época era enorme) no colo. Imaginava estar num desses subterrâneos, e que cada manchinha branca daquelas era a abertura para uma caverna vizinha. E mais uma vez experimentava uma tontura, uma vertigem diante de tantos caminhos abertos e da impossibilidade de explorar todos eles.

Imagens desse tipo se fixam na mente de muitos indivíduos, e aqueles que se tornam escritores acabam procurando reproduzir de uma maneira ou de outra essas pequenas vertigens conceituais que nos fazem experimentar, na infância, o prazer e o terror de estar-no-mundo. Jorge Luís Borges afirma reiteradamente em seus escritos a influência que teve, sobre ele, o famoso paradoxo de Zenão, em que Aquiles por mais que corra nunca consegue alcançar a tartaruga, ou a demonstração de que o movimento é impossível porque antes de atingir qualquer ponto devemos atingir primeiro um outro, e assim por diante, “ad infinitum”. Vem daí a incondicional admiração de Borges por Kafka, cujas obras ele talvez tenha sido o primeiro a traduzir na Argentina. Kafka narrava parábolas nítidas e tinha como um dos seus temas preferidos a impossiblidade de se fazer qualquer coisa, pela mera multiplicação de obstáculos.

No meu caso, ocorre justo o contrário. Creio que podemos fazer o que quisermos, nada nos impede, e a única frustração humana é o fato de não podermos estar em um milhão de lugares ao mesmo tempo, de não podermos optar por um milhão de galerias simultaneamente. Sou o anti-Kafka, porque para mim tudo é possível e realizável, mas minha angústia é maior do que a de Kafka porque cada vez que me vejo nas cavernas subterrâneas rodeado por mil passagens sei que ao optar por qualquer uma delas estarei sacrificando 999.

A ficção científica veio ao meu socorro ao fantasiar (com o distante aval da Física Quântica) que na verdade existem universos paralelos onde continuam existindo todas as possibilidades que não escolhemos, e nesses universos existem cópias idênticas de cada um de nós trilhando os caminhos que escolhemos não trilhar neste Universo aqui. As possibilidades, como sempre, são infinitas.

1511) Os edifícios eternos (16.1.2008)




(foto: Markus Senn)

Tempos atrás, numa inevitável mesa de bar, andei perorando contra a especulação imobiliária que “passa o rodo” em ruas antigas e em prédios históricos para instalar em seu lugar uns monstrengos de concreto com nomes de pintores famosos. 

Essas minhas diatribes não significam que sou contra o progresso, ou contra os edifícios de apartamentos (moro num deles, aliás). Acontece que todo mundo que se apega afetivamente a uma paisagem tem o direito de desejar que a existência dela se prolongue o máximo possível. 

Em Campina, demoliram anos atrás a casa em que eu nasci, na descida para o Ponto Cem Réis e o Alto Branco, para abrir uma rua de acesso, sendo que já existia outra rua de acesso a poucos metros de distância. Pergunto eu que necessidade tinha de demolir minha casa!

Manuel Bandeira tem um divertido poema sobre o Recife de sua infância. Fala que passou trinta anos sem voltar ali, que todo mundo elogia o quanto a cidade está crescendo e se pondo bonita, e diz no final: 

Revi afinal o meu Recife. 
Está, de fato, completamente mudado. 
Tem avenidas, arranha-céus. 
É hoje uma bonita cidade. 
Diabo leve quem pôs bonita a minha terra! 

Vejam bem: o poeta nem sequer diz que a cidade ficou horrorosa, ao contrário, reconhece que ficou bonita. Mas ele não a queria bonita e diferente, queria-a feia e igual. Queria-lhe a permanência. A permanência impossível.

É direito dos jovens de ontem amar um quarteirão de casinholas e lamentar sua substituição por um shopping-center, assim como será direito dos jovens de hoje amar esse mesmo shopping-center e lamentar um dia sua substituição por um quartel militar norte-americano. 

Cada um se afeiçoa à paisagem que serve de pano-de-fundo à sua história pessoal. Quando caminho pela Esplanada do Castelo, aqui no Rio, acho aquilo uma beleza: ruas largas e claras, prédios baixos, imponentes... 

Não tenho saudade do Morro que existia ali, e que foi botado abaixo no começo do século, à força de dinamite e de mangueiras de alta pressão. Que sinta falta do morro quem o freqüentava; eu sentirei falta da Esplanada, se um dia a vir ensombrecida por um mega-viaduto.

O mesmo Manuel Bandeira, ao celebrar com tristeza o beco em que morou na Lapa, disse: 

Vão demolir esta casa. 
Mas meu quarto vai ficar, 
não como forma imperfeita 
neste mundo de aparências: 
vai ficar na eternidade, 
com seus livros, com seus quadros, 
intacto, suspenso no ar! 

Não há imagem mais bela em nossa poesia para essa persistência da memória, em que o destruído se imortaliza. 

Por volta da mesma época desse poema, Drummond celebrava assim a destruição de Stalingrado pelo exército nazista: 

Mas o assombro, a fábula 
gravam no ar o fantasma da antiga cidade 
que penetrará o corpo da nova. 
Aqui se chamava 
e se chamará sempre Stalingrado. 
-- Stalingrado: o tempo responde. 

Que os prédios recém-chegados saibam receber com respeito o espírito das casinhas de porta-e-janela que lhes coube substituir.






1510) “A Sereia do Mississipi” (15.1.2008)


Revi na TV a cabo este obscuro filme de 1969 dirigido por François Truffaut, que nem mesmo seus maiores fãs costumam incluir entre seus melhores trabalhos. Foi um filme relativamente caro, com duas grandes estrelas (Catherine Deneuve e Jean-Paul Belmondo) no auge da fama e do talento, e filmagens em vários lugares da França e na Ilha de Reunião, perto de Madagascar. Sofreu cortes de 13 minutos para passar nos EUA, e a versão que passa hoje na TV é a versão restaurada, com mais de 2 horas de duração.

O filme, baseado no romance Waltz into Darkness de Cornell Woolrich, conta a história de um industrial na ilha de Reunião que arranja uma namorada por correspondência e a pede em casamento. Quando a noiva chega de navio, é Catherine Deneuve. Ele acha que tirou a Mega-Sena, mas logo começam a surgir – como em toda história de noivado por correspondência ou de casamento por procuração – a suspeita de que está havendo um erro (ou usurpação) de identidade. É um enredo com reviravoltas, que começa num clima de mistério e depois ruma na direção de um policial “noir” bastante próximo ao Atirem no Pianista do mesmo Truffaut, que comentei há algumas semanas.

Consultando o inestimável IMDB (Internet Movie Data Base) fiquei sabendo de duas cenas que foram cortadas nos EUA, o que diz bem do que são as expectativas do mercado americano. Uma delas é uma cena em que o casal está sentado diante de uma lareira e Belmondo elogia a beleza de Deneuve, tocando-lhe o rosto com os dedos. É uma cena que tem ternura e sensualidade, e ao mesmo tempo aquele distanciamento voyeurístico dos diretores da nouvelle vague, que pareciam amar as imagens mais do que as coisas. Outra é a cena em que quando Belmondo viaja Deneuve entra num estúdio (onde há a placa” Grave aqui sua mensagem!”) e grava num pequeno compacto de vinil uma declaração de amor para o marido; ao sair do estúdio, distraída, quase é atropelada por um carro e deixa o disco cair e quebrar-se. São pequenas cenas que os autores de manuais de roteiro tipo Syd Field provavelmente mandariam cortar, porque não avançam a ação nem definem o personagem; e são duas cenas que considero perfeitas.

A Sereia do Mississipi, Atirem no Pianista, e também Pierrot Le Fou de Godard são maneiras francesas de focalizar o tema tradicional do “filme noir” americano: um homem decente que, apaixonado por uma mulher, vai de degrau em degrau rumo ao crime, à marginalização e à morte, mas nada o faria mudar de idéia. O filme mostra a influência de Hitchcock (a dupla personalidade de Deneuve, e a paixão que ambas despertam, lembra Um Corpo Que Cai). Mas o crítico D. Fienberg (no saite “Epinions”) observa: “Truffaut só consegue fazer um filme de Hitchcock até um certo ponto, e logo está fazendo um filme de Truffaut”. Isto é o maior elogio que um grande cineasta pode receber – a incapacidade de não ser ele mesmo.

1509) Decifrando palavras (13.1.2008)




Existem palavras cujo significado não sabemos mas que nos impõem respeito pelo seu tamanho, pela sua sonoridade. Autores como Augusto dos Anjos ou Guimarães Rosa jogam em nosso colo, a cada linha, um polissílabo indecifrável, e nem por isso deixam de ser lidos. 

É claro que outros autores de vocabulário igualmente rebuscado caíram num injusto esquecimento, como é o caso de Coelho Neto ou Emílio de Menezes, mas em todo caso a fama de uns e a obscuridade dos outros deve ser atribuída a um conjunto de fatores que vai além do simples vocabulário.

Augusto dos Anjos dizia muitas vezes coisas incompreensíveis, mas com uma tal precisão métrica e uma tal riqueza sonora no uso da rima que aquelas palavras pareciam não só inevitáveis, como obrigatórias. 

O fato de não sabermos o que é “o cosmopolitismo das moneras” perdia importância diante do impacto melódico com que ele surge no interior da estrofe. 

Há um divertido poema de Pablo Neruda, “Orégano”, em que ele descobre essa palavra e se deixa fascinar por ela. Sai pelas ruas bradando: “Orégano! Orégano!”. À sua passagem as pessoas se espantam, e os leões se ajoelham aos seus pés. Toda palavra nova que descobrimos é uma palavra mágica, capaz de gerar prodígios.

Uma palavra vale como signo total da coisa que representa. No seu célebre poema “Liberdade”, Paul Éluard dizia: 

E pelo poder de uma palavra 
eu recomeço minha vida 
eu nasci para te conhecer 
para te nomear: 
Liberdade. 

Pelo poder de cada palavra existente podemos evocar seu sentido direto, seus significados secundários, suas nuances, suas associações de idéias... Mas acima de tudo podemos evocar significados impossíveis ou improváveis que brotam da sonoridade, da rima, da semelhança dessa palavra com outra. 

“Orégano” pode a uma pessoa lembrar “origem”, a outra pode lembrar “ébano”, a uma terceira pode lembrar “onagro” (jumento selvagem, ou uma espécie de catapulta militar antiga). 

Guimarães Rosa, em “São Marcos”, tem um longo trecho sobre a magia sonora das palavras, que segundo ele, numa expressão que se tornou famosa, “têm canto e plumagem”, ou seja, se impõem pela sua força melódica e pela vividez de sua sugestão visual.

Augusto dizia que a idéia “vem do encéfalo absconso que a constringe”. Sabemos que encéfalo quer dizer cérebro (todo mundo já ouviu falar em “eletro-encefalograma”, etc.). “Constringe” é uma mistura de “constrange” e “restringe”, mas não deve ser invenção de Augusto, e sim uma variante híbrida dos dois termos. O que diabo será “absconso”? Pelo contexto significa algo remoto, misterioso. Seu formato sugere que é formada de “ab + sconso”. “Sconso” ou “esconso” deve ser variante de “escondido” (assim como “canso” é variante de “cansado”). 

Em alguns segundos, numa leitura lenta, sem pressa, o encéfalo processa essas possibilidades, o texto entremostra seus segredos, apenas o bastante para que continuemos a explorá-lo.