terça-feira, 5 de janeiro de 2010

1482) A tumba de Jesus (13.12.2007)


Em 1980, operários que preparavam os alicerces de um prédio de apartamentos, em Jerusalém, escavaram a entrada de uma antiga tumba, encimada (o que não era comum entre tumbas desse tipo) por um sinal que não foi decifrado: um grande V invertido tendo no centro um pequeno círculo. Arqueólogos foram chamados e tiveram três dias para mapear a tumba e retirar dali o que fosse de interesse. Eles retiraram uma meia dúzia de ossuários (pequenos esquifes de pedra) que foram para o Museu. Depois, a tumba foi lacrada, coberta, e o prédio de 15 ou 20 andares foi erguido ali em cima.

Anos depois, os pesquisadores do Museu viram que aquele grupo de ossuários era especial. Num deles estava escrito: “Maria”. Em outro, “Jesus, Filho de José”. Em outro, “Mateus”; em outro, “Tiago” (eram os nomes de dois dos presumidos irmãos de Jesus Cristo, o “Jesus histórico” como se diz). Houve um alvoroço muito grande com esses achados, e parte desse alvoroço é um documentário exibido no Canal Discovery. Existe um saite com todo o material relativo à descoberta – fotos, mapas, e um documento PDF com a descrição minuciosa do que foi encontrado na tumba. Tudo aqui: http://dsc.discovery.com/convergence/tomb/tomb.html

O filme (cerca de uma hora e meia) tem uma narrativa fascinante. Primeiro, acompanhando a decifração dos nomes, que foram rabiscados no exterior dos ossuários há dois mil anos. Depois, acompanhando os esforços dos pesquisadores para encontrar a localização exata do túmulo sob um moderno condomínio, e a sucessão de golpes de sorte que acaba por levá-los à redescoberta da tumba.

Autoridades da igreja, claro, dizem que não é nada disso. Nomes como Jesus, Maria, Tiago, etc. eram muito comuns naquela época. Os pesquisadores rebatem dizendo que eram nomes comuns, isoladamente, mas todos eles no interior de uma mesma família (tumbas daquele tipo eram próprias para sepultamentos de membros de uma família) são coincidência demais. A presença de um ossuário com o nome “Mariamne” também chama a atenção; os pesquisadores fazem um complicado raciocínio linguístico para explicar que “Mariamne” é “Maria Madalena”, e que estaria na tumba por ser esposa de Cristo, além de um outro ossuário com o nome “Judá, filho de Jesus”.

Quando a tumba foi aberta em 1980, os ossos foram acondicionados separadamente e sepultados num solo sagrado, mas num local (ao que me parece) que ninguém lembra mais onde foi. Seria uma ironia muito grande se, dois mil anos depois, tivéssemos de fato encontrados os restos físicos de Jesus Cristo e voltado a enterrá-los num lugar qualquer. Ou talvez não. Os pesquisadores rasparam a face interna dos ossuários e recolheram material para os exames de DNA (aliás, provaram que todos eram da mesma família, menos “Mariamne”, o que reforça a tese de que seria a esposa de um deles). O material era suficiente para os testes, mas não para clonar um dos personagens. Ainda bem, porque senão não sei do que seríamos capazes.

1481) Flash Gordon (12.12.2007)




Numa entrevista à TV, o escritor português Antonio Lobo Antunes disse que todo escritor, ao ser indagado sobre as influências que o levaram a escrever, costuma citar Joyce, Proust, etc. Para ele, isso é conversa fiada de intelectual. 

“Quem nos leva a escrever é Flash Gordon”, disse. “Muito antes de conhecermos os grandes autores, a vontade de contar histórias já nos foi despertada por aqueles autores ditos menores, mas que apaixonam nossa imaginação: Emilio Salgari, Julio Verne...”

Yambo, o protagonista da A Misteriosa Chama da Rainha Loana de Umberto Eco, é um homem com amnésia que reconstitui a própria infância através dos livros e gibis que leu. Yambo relaciona a imagem de Flash Gordon, que ele lia no semanário L’Avventuroso, aos heróis arianos da época (1934) e à própria imagem de Mussolini, e diz à página 237: 

“Tive em Flash Gordon a primeira imagem de um herói de uma guerra de libertação combatida em um Alhures Absoluto, fazendo explodirem asteróides fortificados em galáxias distantes”. 

Ele percebe também os anacronismos dos quadrinhos de Alex Raymond, em que os personagens “eram incongruentemente dotados tanto de armas brancas ou flechas quanto de prodigiosos fuzis de raio fulminante”.

Ariano Suassuna recorda ter visto na infância Flash Gordon no Planeta Mongo, e diz: “Quando vi a chegada do homem à Lua pela televisão, fiquei decepcionado. Flash Gordon era mil vezes mais interessante”. 

Lobo Antunes nasceu em 1942, Eco em 1932 e Ariano em 1927. Nestes três escritores tão diferentes entre si vemos o resultado de uma das primeiras investidas maciças da cultura pop norte-americana (cinema e quadrinhos) durante as décadas de 1930-40.

Hoje em dia vivemos saturados de “Space Opera”, a tal ponto que mesmo os aficionados (como eu) consideram isto uma banalização insuportável da beleza da FC. 

Flash Gordon surgiu numa época em que o “realismo aparente” era soberano. Naquela paisagem naturalista e banal suas aventuras envolviam reinos futuristas, monstros pré-históricos, foguetes espaciais, lutas de gladiadores, pistolas desintegradoras. 

Eram, e ainda são, um escoadouro indisciplinado e descontraído para as imagens do inconsciente, sem a mínima preocupação com a lógica ou a verossimilhança. A imagem brotando pelo seu valor como imagem; a peripécia surgindo pelo seu valor como peripécia.

Flash Gordon foi o Star Wars de seu tempo, ou melhor, uma síntese surrealista entre o futurismo de Star Wars e o medievalismo de O Senhor dos Anéis. Nada tem de científico. Seus enredos são absurdos, seus personagens são de papelão. 

No cinema, os efeitos especiais provocam risos no espectador de hoje; nos quadrinhos, o belo desenho de Alex Raymond continua imbatível. Mas acima de tudo ele comprova o poder da imaginação pura, despida de pretextos, independente da razão e da lógica. 

Flash Gordon é o nosso inconsciente coletivo posto a nu e revelado às crianças antes que elas sejam vacinadas contra a imaginação.






1480) Uma chama que não se apaga (11.12.2007)




(o final da cena de Truffaut)

Sou um colecionador de coincidências e sincronicidades, e algumas são de tal natureza que não resisto a compartilhá-las. 

Hoje, por volta das 7 da noite, eu estava às voltas com Borges, o maciço diário em que Adolfo Bioy Casares anotou suas décadas de conversas-após-a-janta com o autor de Ficções

À página 487, os dois amigos comentam uma frase do Bispo de Worcester, Hugh Latimer (1470-1555). Condenado à fogueira com outro mártir protestante, seu amigo Nicholas Ridley, disse Latimer: “Be of good comfort, Master Ridley, and play the man. This night you and me will light a candle, in England, that won’t be put out”.

A tradução é escorregadia, mas a frase diz, mais ou menos: “Seja um companheiro à altura, Sr. Ridley, e aja como um homem. Esta noite nós dois acenderemos na Inglaterra uma vela que ninguém será capaz de extinguir”. 

Borges elogia a expressão “be of good comfort”, o uso de “Master” (que em inglês tanto é “mestre” quanto um tratamento reservado a meninos e rapazes de boa família), e diz que o uso do verbo “to play” reforça a hombridade do conselho: “aja como um homem”, no sentido de “represente o papel”, mesmo que não o seja. 

Também elogia a imagem dessa luz que os dois iriam acender com os próprios corpos; e Bioy Casares refere que, segundo alguns testemunhos, Latimer acariciou as chamas quando estas o envolveram.

Bem, li essa passagem às 7 da noite. Às 11 estava vendo o DVD de Fahrenheit 451, o filme de FC de François Truffaut sobre uma sociedade futura em que a leitura é proibida e cabe aos bombeiros ir de casa em casa, queimando livros e prendendo os leitores. 

A certa altura os bombeiros invadem uma casa cheia de livros onde mora uma velhinha que, ao vê-los, sabendo que não tem mais chance de fugir, desce a escada dizendo, com ironia: “Play the man, Master Ridley...”, bibibi, bobobó. 

Agora me digam – quantas são as chances de um sujeito encontrar, na mesma noite, em duas fontes totalmente independentes uma da outra (filme franco-inglês de 1966, livro argentino de 2006 narrando um diálogo ocorrido em 1959), a mesmíssima frase de 1555, que nunca tinha lido?

Só mais duas coisas. A primeira é que em seu conto “Os Teólogos” (em O Aleph, 1949) o próprio Borges já intuía essa tendência multiplicatória das fogueiras, ao fazer o heresiarca Euforbo (um defensor da teoria do Tempo Circular, ou do Eterno Retorno), atado ao poste, profetizar: “Isto ocorreu e voltará a ocorrer. Não acendeis uma pira, acendeis um labirinto de fogo. Se aqui se unissem todas as fogueiras que tenho sido, não caberiam na terra e os anjos ficariam cegos”.

A segunda é pensar que bastaria estar vendo o filme com alguém, e que essa pessoa dissesse: “Quem é esse Mr. Ridley que ela tá falando...” Eu pigarrearia discretamente e diria: “Oh, ela está comentando uma frase do Bispo de Worcester, dita em 1555...” E é de coincidência em coincidência que a gente constrói uma fama de intelectual.






1479) O Eco da Memória (9.12.2007)




Acabei de ler a última página do romance de Umberto Eco A Misteriosa Chama da Rainha Loana (Record, 2005) e o que mais lamento é minha total incapacidade de ler sequer uma frase em italiano, porque este é um livro sobre memória cultural de um italiano que viveu a infância e a adolescência sob o fascismo. 

Um texto saturado daquilo que o pessoal do Pasquim chamava “a horta da Luzia”: uma floresta de referências culturais obscuras, a chamada cultura-de-almanaque, o interminável jogo do “você sabia?”, e toda a “trívia” resultante de nossa maciça absorção do que nos vem do rádio, do cinema, das revistas, etc.

Yambo Bodoni é um comerciante de livros raros que sofre um AVC e fica amnésico. Ele mantém a memória geral: sabe andar, falar, sabe que está na Itália, etc. Mas perdeu todas as suas memórias pessoais: não reconhece a esposa e os filhos, não sabe quem é. (Casos assim são mais freqüentes do que se imagina.) 

Começa então um trabalho lento de recuperação da própria biografia, e Yambo recorre à memória cultural de sua infância. Viajando para a casa de sua família no interior, ele começa a remexer no sótão e nos armários, e tudo que encontra lhe restitui um pedaço de si mesmo. Gibis, discos 78, jornais, revistas, panfletos fascistas, brinquedos, letras de músicas, coleções de selos...

O charme do livro é que ele é todo ilustrado com fac-símiles de tudo que traz Yambo um reconhecimento nostálgico. O livro de Eco é um caso radical e especial de “anagnórise”, a “descoberta, ou reconhecimento” que ocorria nas tragédias gregas, quando um personagem tinha a revelação sobre a verdadeira identidade de alguém. 

Esse recurso virou clichê no romance folhetim: é o rapaz pobre que se descobre herdeiro do trono, são os jovens enamorados que descobrem terem sido amiguinhos de infâncias, é a mãe que descobre no rapaz simpático da vizinhança o filho perdido há muitos anos. 

No livro de Eco, é um indivíduo tentando descobrir a si mesmo, porque os outros (a esposa, os amigos) só lhe revelam o que sabem ou acham a seu respeito. Mas ele mesmo, em seu interior, em seus segredos íntimos, continua um desconhecido para si próprio.

O romance pode ser cansativo pelas incessantes enumerações do personagem, recordando leituras, canções de sucesso, fatos políticos, mas para quem se interessa pelo lixo cultural (no bom sentido) que abarrota afetivamente nossa memória não tem como não gostar, mesmo que grande parte das referências culturais de Eco passem em branco para um leitor brasileiro de outra geração. 

O impressionante é a quantidade de memórias semelhantes, principalmente leituras; no caso das canções de rádio, “não pegou nem uma letra”, como se diz por aí.

Eco escreve brilhantemente, como sempre; mesmo com o excesso de citações sua prosa é agradavelmente barroca, e as últimas cinqüenta páginas são uma “viagem” digna de Fellini e de David Lynch.






1478) O inferno do tímido (8.12.2007)


Na TV, um psicólogo analisava a mentalidade do sujeito tímido, e eu gosto de avaliar quem discorre sobre temas de minha especialidade. O entrevistado dizia (com outras palavras) que um tímido tem uma imaginação calamitosa. Se ele estiver numa festa ou num bar, e vir uma moça dando bola, com insistência, a cena que ele imagina não é a mesma de um cara normal. No momento em que ele se puser a caminho rumo à garota as luzes se apagarão, um holofote será aceso sobre ele, todo o ruído e todas as vozes cessarão, e o recinto inteiro vai acompanhar os seus passos. Naquele silêncio de se ouvir queda de alfinete ele chegará junto da moça, e na hora em que disser qualquer coisa (como: “Você vem sempre aqui?”) as luzes se acenderão e uma gargalhada ensurdecedora e incontrolável se ouvirá por todo o recinto, enquanto a garota aponta o dedo para ele e tem um ataque incontrolável de riso.

Tive vontade de cobrar direitos autorais, porque foi essa cena que passei a juventude imaginando. Foi ela, ou qualquer das variantes dela, que me manteve sentado e teso na mesa do clube, ou encurvado e bebericante no balcão da casa de shows. Nem sob a ameaça de metralhadoras eu correria o risco de passar por isso. Podem rir, amigos, mas embora essa cena nunca aconteça, acontecem cenas piores. Num desses balcões de bar eu já vi um hipopótamo desajeitado aproximando-se de uma moça e gaguejar: “Oi! Você também está gostando do show?” A moça deu uma gargalhada, voltou-se para a amiga mais próxima e disse: “Fulana, é comigo mesmo que essa coisa tá falando?”

Houve um tempo em que surgiram em Campina umas barraquinhas que vendiam mate gelado (com limão, com maçã, com leite). Tinha uma na calçada do Maringá, de costas para o Capitólio; outra na calçada do Correio; acho que mais outra na Cardoso Vieira antes de virar Calçadão. Eu achava o mate com limão uma beberagem dos deuses, principalmente no calor do meio-dia, quando acabava a aula no Alfredo Dantas. E ficava andando devagar, de barraca em barraca, criando coragem para tomar um. Segurava a nota de dois cruzeiros no bolso, para não perder tempo na hora em que criasse coragem, mas cada barraca que eu me aproximava tinha um problema. Numa, o sol batia mesmo de frente. Noutra, muita gente à espera. Na terceira, ninguém, e por isto mesmo aumentava minha timidez diante da mocinha que atendia – eram sempre umas moreninhas bonitas, de dezoito anos, que aos meus quinze pareciam balzaqueanas experientes e inacessíveis.

Um dos meus triunfos na vida é que em 90% dos casos eu acabava tomando o mate sem que a rua vaiasse. E houve uma vez em que, quando eu sorvia o néctar gelado, ela me olhou, perguntou meu nome. A pergunta era tão inesperada que respondi, bem normal. Terminei, paguei; ela me deu um sorriso brejeiro, de olhos baixos, e disse: “Volte sempre, Braulio...” Não sabe ela a importância que teve, porque, sob um certo ponto de vista, o fato é que nunca deixei de voltar.