domingo, 15 de novembro de 2009

1371) Michelangelo Antonioni (5.8.2007)



Mal nos acostumávamos à perda de Ingmar Bergman, chega no dia seguinte a notícia da morte, aos 94 anos, de Michelangelo Antonioni. E o mundo vai ficando cada vez mais vazio, mais despovoado, ao perder justamente dois dos cineastas que mais nos ensinaram o que é a incomunicabilidade entre os seres humanos e o quando é vasta nossa solidão dentro de nós mesmos. Bergman e Antonioni eram de uma época em que escritores e cineastas discutiam questões filosóficas, e o público ia ao cinema para se inteirar destas discussões. Com o verdadeiro massacre anti-intelectual que vigora na cultura-de-massas de hoje, suas obras estão virando peças de museu. O cinema cultiva a violência gratuita e a permissividade sexual. E no meio do alarido e da “balada” as pessoas (pasmem) estão cada vez mais solitárias, mais bergmanianas, mais antonionescas. Bem feito.

Antonioni tornou-se famoso por uma trilogia de filmes introspectivos e plasticamente perfeitos, com fotografias P&B maravilhosas: A aventura, A noite e O eclipse. Meu filme preferido é o que ele dirigiu a seguir na Londres pop e roqueira: Blow Up – Depois daquele beijo, inspirado num conto de Julio Cortázar. Fez nos EUA Zabriskie Point (que pouca gente gostou) e depois um belo filme a cores, Deserto Vermelho. Fez outra obra-prima incontestável: O Passageiro – Profissão repórter, com Jack Nicholson. Depois disso perdi de vista sua obra, que foi mal distribuída no Brasil e não despertou muita atenção. Para mim, seu nome está associado a estes filmes – e mais a O Grito, seu primeiro filme importante, que vi no Cine Babilônia, história de um operário que é traído pela mulher e sai vagando pela Itália, desconsolado, até voltar para casa e suicidar-se.

Antonioni era chamado “o cineasta da incomunicabilidade”. Seus filmes têm longas cenas, impecavelmente iluminadas e enquadradas, em que os personagens conversam como se não escutassem um ao outro (as pessoas fazem isso o tempo todo, sem perceber, e quando vêem no cinema não entendem, pensam que é um defeito do filme). Quando estudei cinema, um professor meu falava o tempo todo no “cinema arquitetônico” de Antonioni: um cinema onde o ambiente, os espaços, as paredes, as colunas, os portais, têm uma importância tão grande quanto as pessoas. Se Bergman tornava mais real um simples objeto, nos filmes do italiano a câmara em movimento nos conduzia fisicamente através de um ambiente onde nos sentíamos mais presentes do que aqueles casais sem rumo que vagavam por ali: Mastroianni, Jeanne Moreau, Alain Delon, Monica Vitti.

Antonioni teve um derrame e perdeu a fala; mesmo assim continuou dirigindo filmes. Parece uma situação de um filme seu, ou melhor, não parece, pois ele jamais recorreria a uma situação tão melodramática para expressar a idéia de que “é conversando que a gente se desentende”, princípio básico de seu cinema, onde o próprio cinema é a única linguagem que nos atinge na medula do ser.

1370) O futebol no Iraque (4.8.2007)



Domingo passado, a seleção de futebol do Iraque ganhou pela primeira vez na História a Copa da Ásia, ao derrotar por 1x0 a Arábia Saudita, num jogo realizado em campo neutro, na Indonésia. É um dos grandes acontecimentos futebolísticos do ano. Todos nós acompanhamos pela imprensa a situação de caos e de carnificina que vive o país iraquiano, com massacres quase diários através de carros-bombas, seqüestros e execuções sumárias, atentados, etc. O país está se fazendo em pedaços, e o pior de tudo é que nem sequer são os invasores norte-americanos que promovem as matanças, são os próprios iraquianos que vão na goela uns dos outros.

O Iraque é um arranjo geopolítico criado pelas potências européias para ocupar aquela região do Oriente, riquíssima em petróleo e em relíquias históricas. A população consiste mais ou menos em 45% de árabes xiitas, 30% de árabes sunitas e 25% de curdos. Todos se odeiam, e não é de hoje. Durante a ditadura sunita de Saddam Hussein, ele perseguia os adversários, reprimia-os, e impedia que estes retaliassem. Quando os americanos derrubaram Saddam, foi como soltar no quintal três pitbulls que se detestam.

A seleção de futebol inclui jogadores dos três grupos. O país inteiro torceu por ela. Ela representa as principais etnias e religiões do país; é um pouco como aquela seleção francesa campeã em 1998, onde havia gente de origem francesa, belga, suíça, argelina, africana, etc. Um quebra-cabeças onde todo o mosaico cultural francês estava representado. Pois os iraquianos derrotaram na semi-final a Coréia do Sul, nos pênaltis, após um empate de 0x0. No domingo, venceram a Arábia Saudita e a festa tomou conta do país inteiro.

Quer dizer – a festa, e a matança. Já no jogo da semifinal, durante as comemorações, dois carros-bombas explodiram em praças repletas de torcedores em festa, matando mais de 50 pessoas. Como se não bastasse isto, os iraquianos, como outros povos árabes, têm o costume de comemorar as ocasiões festivas disparando para o alto tiros de armas de fogo. Pelo menos duas pessoas morreram atingidas por balas disparadas para o alto e que voltaram a cair sobre a multidão.

Pode ser desumano o que vou dizer, mas essas notícias me entristeceram muito mais do que as que vejo toda semana, quando os carros-bomba simplesmente matam gente em fila de emprego ou gente fazendo a feira num mercado. Eu lamento essas mortes, mas me conformo um pouco. Mas quando vi as notícias sobre as mortes de torcedores que comemoravam a vitória da seleção, a dor foi grande. Talvez porque a seleção, uma imagem utópica da convivência pacífica entre aqueles grupos, tenha sido ofendida no meio de sua maior festa. Talvez porque o técnico do Iraque seja um brasileiro, e isso de certa forma deixe os iraquianos um pouco mais próximos de nós. A morte de quem parece com a gente, digamos a verdade, sempre nos comove mais do que a morte do diferente, a morte do distante.

1369) Ingmar Bergman (3.8.2007)




O mundo está ficando mais deserto. Quando morre uma pessoa como o cineasta sueco Ingmar Bergman, a sensação que eu tenho é de olhar em volta e não estar vendo ninguém. Como se todos os personagens criados por ele ficassem transparentes, quase invisíveis, num estalar dos dedos. 

Bergman nunca foi o meu cineasta favorito, mas no tempo em que eu abri os olhos para o Cinema de Arte ele pontificava absoluto, incontestável, unânime. Mesmo os que não gostavam de sua temática sombria reconheciam o primor de sua linguagem. 

Fazia um cinema denso, sofrido, existencial, maduro. Paulo Francis disse certa vez: “A diferença entre Godard e Bergman é que Godard leu a orelha do livro, e Bergman leu o livro”.

O filme típico de Bergman é a história tormentosa da relação afetiva entre pessoas maduras. Aqui entram A Hora do Amor, Cenas de um Casamento, Persona, Gritos e Sussurros, filmes introvertidos, magnificamente fotografados. 

Como dizia Francis, Bergman sabe como ninguém dar concretude às pequenas coisas: uma xícara, uma janela, uma mão. Há vários títulos seus que nunca vi, talvez seja este o momento de conhecê-los: O Silêncio, Sorrisos de uma Noite de Amor, Noites de Circo, Fanny e Alexander. É uma obra imensa, mas hoje felizmente acessível em DVD.

Tenho uma queda especial pelos seus filmes que envolvem elementos fantásticos. 

O Sétimo Selo é uma fábula medieval sobre um mundo devastado pela peste, a qual no fim arrebanha a todos, menos um casal de saltimbancos. A imagem final, dos seis mortos dançando de mãos dadas na colina, conduzidos pela Morte, é uma das mais belas do cinema. 

O Rosto é a história de um mágico que visita um castelo e revoluciona as vidas de todos com seu ilusionismo. 

A Hora do Lobo fala dos fantasmas e dos pesadelos de um artista, tão intensos que sua esposa acaba por vê-los. 

Também gosto (ao contrário da maioria dos críticos) das suas obscuras e incômodas alegorias políticas como Vergonha, um filme sobre a sordidez moral imposta pela guerra, e O Ovo da Serpente, uma mistura de 1984 com O Show de Truman, em que um casal é submetido à revelia a cruéis experiências psicológicas.

Bergman costumava trabalhar com os mesmos atores, os mesmos técnicos (como o diretor de fotografia Sven Nykvist, um dos melhores do cinema), os mesmos enredos. Não era um cineasta fácil, e hoje não sei se é um cineasta para ver e rever obsessivamente aos vinte anos, como fazíamos. Pelo impacto massacrante de suas imagens e pela imensa verdade psicológica transmitida por seus atores, ficávamos com a impressão de que a vida real era aquilo e nenhuma outra coisa. 

Ficávamos achando que tínhamos de pensar como os personagens de Bergman, sentir como eles, experimentar a vida como eles. Não era só imaturidade emocional ou postura colonizada diante do cinema europeu. Era porque um prato na mesa, num filme de Bergman, parecia mais real do que o cinema onde estávamos.