sábado, 10 de outubro de 2009

1295) “Freud e seu duplo” (8.5.2007)



Uma das muitas importâncias que tem a obra do Dr. Sigmund é sua capacidade de ser entendida psicologicamente por um psicólogo, medicamente por um médico, literariamente por um escritor etc. É sobre este último caso que se concentra a atenção de Noemi Moritz Kon neste livro publicado em 1996 pela Editora da Universidade de São Paulo. Até que ponto Freud era escritor, no sentido literário do termo? Até que ponto a Psicanálise pode ser entendida como literatura, ou seja, a criação de significados por si mesma, e não a busca e avaliação de significados exteriores a si?

Freud comentou várias vezes que a Psicanálise se assemelhava à Arqueologia. Tratava-se, sob esta ótica, de descobrir memórias soterradas, fosse pela mera ação do tempo, fosse pelo trabalho ocultativo de quem cobre de terra os seus malfeitos, como um gato doméstico ou um assassino apressado. Cabe ao médico remover essa terra, trazer à luz o que estava oculto, expô-lo ao paciente e perguntar: “Quer falar sobre isto?” Esta é uma das maneiras de ver a coisa. Outra maneira – pelo que vejo, também legítima, também endossada por muitos psicanalistas – é reconhecer que nem sempre se sabe se a relíquia desenterrada (seja caco de cerâmica inca ou dente de brontossauro) é autêntica ou não. Freud se deparou com isto em seus primeiros estudos sobre a histeria, quando percebeu que os relatos de violações de suas pacientes não tinham acontecido, eram fantasias delas, misturando lembranças confusas da infância com suas próprias releituras maliciosas de mulher adulta.

Isto lembra uma imagem de Jorge Luís Borges sobre o mundo imaginário de “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”. Neste mundo, a mente tem primazia sobre a matéria, e é possível criar objetos simplesmente imaginando-os. Fulano perde um objeto, acha-o, mas Sicrano, que o ajudava a procurar, acaba encontrando um segundo objeto quase idêntico ao que estavam procurando. Este segundo objeto é um “hrön” (plural: “hrönir”). Pode ser produzido apenas pela esperança ou pela expectativa. Alguns trabalhadores são designados para escavar num suposto sítio arqueológico, onde devem existir relíquias, e começam a desenterrar objetos variados, inclusive “uma roda enferrujada com data posterior ao experimento”. Como tudo em Borges, parece uma sátira a determinados projetos científicos, e tanto pode se referir à Psicanálise quanto à Física de laboratório.

“Quem procura, acha”, já diz a sabedoria oracular da TV popularesca. Freud comparou certa vez a Psicanálise e a Arte dizendo que a Psicanálise era como a escultura, que se limita a retirar o “entulho”, deixando no fim do trabalho algo que já estava ali e foi revelado pelo processo de retirada, enquanto que a Arte seria como a pintura, que se aproxima de um espaço em branco (a tela) e o cobre com formas e cores saídas da imaginação do artista, mas que antes disto “não estavam lá”. Mas sua própria prática mostrou-lhe que a diferença não é tão grande assim.

1294) “A Encomenda do Bicho Medonho” (6.5.2007)




(uma das obras de Seu David)

Dois filmes paraibanos foram exibidos no recente festival Cine-PE: Cabaceiras de Ana Bárbara Ramos, e o vídeo A Encomenda do Bicho Medonho de André da Costa Pinto. Este último documenta o trabalho do artesão David Ferreira, de Barra de São Miguel. 

Seu David é um barbeiro de 94 anos que nas horas vagas, as quais são muitas (imagine o que é ser barbeiro em Barra de São Miguel) emprega seu tempo esculpindo toras de madeira, criando umas intrincadas engrenagens que só vendo para crer. O leitor já deve ter visto, em lojas de artesanato, aquelas correntes com elos de madeira, elos que não têm emendas, porque foram esculpidos daquele jeito, uns por dentro dos outros, “deixando tudo encangado”.

Diz Seu David que a partir de certa época na vida começou a ter sonhos com um bicho que lhe mandava esculpir essas coisas; ao acordar, passou a obedecer à voz ouvida em sonho. Uma de suas filhas contradiz o pai, num depoimento: “Se ele diz que a voz manda ele fazer umas coisas tão bonitas assim, então não é bicho nenhum, deve ser é um anjo!”. 

Seu David faz caixas ocas, esculpidas de fora para dentro, com correntes desse tipo em seu interior, um troço tão complicado de descrever que é mais simples vocês pegarem um ônibus e irem até Barra de São Miguel para dar uma olhada.

Não duvido de que o trabalho de Seu David seja conhecido por Ariano Suassuna, e tenha servido de inspiração para um episódio do folhetim (publicado entre 1976 e 1977) As Infâncias de Quaderna

Ali, no Folheto “O Ladrão de Madeira”, o protagonista Quaderna, então um menino de dez anos, encontra um de seus irmãos bastardos que vivem soltos na fazenda de seu tio. Matias rouba madeira para esculpir umas formas fantásticas, e confessa a Quaderna que vivia tendo pesadelos em que sonhava com criaturas terríveis. O cantador João Melchíades, que vivia na fazenda, o aconselhou a esculpir esses monstros na madeira, porque assim conseguiria de certa forma domesticá-los, livrar-se de sua ameaça. E Matias diz: 

“Fiz, e livrei-me de novo do pesadelo; mas daí em diante fiquei assim: depois de fazer cada figura, tinha uns dias de folga e de descanso no juízo, mas aí aparecia outra visagem e eu começava a ter outro sonho que só me largava quando eu obedecia à voz de Deus.”

Um cientista diria que o Bicho Medonho que nos faz essas encomendas é o nosso Inconsciente freudiano ou junguiano, aquele tumulto indizível de impulsos atávicos que durante o sonho nosso cérebro reprocessa em termos visuais e auditivos. 

Como dizia Jorge Luís Borges, não é que a gente sonhe com um tigre e sinta medo; a gente sente medo, e o sonho produz um tigre para servir de explicação. Mas de onde vem o medo? De onde vêm os pedidos do Bicho Medonho? Vem, como diria Augusto, “de incógnitas criptas misteriosas” que trazemos em nossa mente. E que alguns privilegiados como Seu David conseguem traduzir num tipo de Arte que não tem (e não precisa ter) explicação.






1293) “Cabaceiras” (5.5.2007)



Estive no Recife participando do Festival de Cinema, o Cine-PE, onde um dos curtas premiados foi Cabaceiras de Ana Bárbara Ramos, que ganhou o prêmio de Melhor Curta-Metragem na opinião do público. Não é pouco. Foram 22 curtas, a maioria deles muito bons. Cabaceiras, ao que parece, tocou o lado emocional da platéia (de 2.300 pessoas por noite) ao mostrar a imensa distância existente entre o cinema que se faz em Cabaceiras e a vida da população local. Comentei aqui, dias atrás (“Roliúde Nordestina?”, 24 de abril) o movimento que está rolando para denominar a simpática cidade do Cariri como a nossa “Roliúde”. Vendo os depoimentos dos cabaceirenses no filme de Ana Bárbara Ramos, fiquei ainda mais convencido do que disse naquele artigo.

O filme resiste à tentação de demorar a câmara durante horas nas formações rochosas do Lajedo do Pai Mateus, por mais fascinantes que sejam. Quem faz isso são os fotógrafos que vêm de fora e que ficam de queixo caído diante daquela geologia surrealista. A câmara (de João Carlos Beltrão) se demora é nos rostos das pessoas, que falam longamente sobre o orgulho que sentem por sua cidade, pelo fato de pessoas de fora virem filmar ali, e tudo o mais. Mas ergue-se no meio dos depoimentos aquela queixa que tantas vezes se repete nos habitantes dos lugares nordestinos que servem de locação para filmes: por que só querem filmar o lado feio, o lado árido? Uma das moradoras compara a cidade com uma cabaça: por fora, parece seca, desinteressante, sem beleza alguma; por dentro está cheia de sementes. “Essas sementes são as pessoas”.

Peço emprestada essa singela metáfora para reafirmar que precisamos olhar o lugar em que vivemos com olhos nossos, e não com os olhos de quem vem de fora. Quem sabe o que temos a oferecer ao mundo somos nós, e não eles. Eles vêm aqui atrás de “mandacarus, canaviais e figurantes” – o que não é nada demais, afinal moram em planetas distantes como o Rio ou São Paulo, e para eles a Paraíba não passa de um lugar pedregoso e místico, uma espécie de Judéia perdida no século 21. Vi ontem, num artigo de Luís Zanin, uma frase de Paulo Emílio Salles Gomes (um dos nossos maiores críticos cinematográficos) que coloca bem esta questão: “Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro.”

Estamos o tempo inteiro nos comparando com europeus, com americanos do norte, com cariocas, com paulistas, com pernambucanos. Precisamos fugir às duas maldições do subdesenvolvimento: recusar raivosamente tudo que vem de fora, ou usar servilmente como espelho tudo que nos vem de fora. A Paraíba tem uma tradição cultural (cinematográfica, inclusive) que poucos Estados têm neste país. Não precisa recorrer a Hollywood para afirmar a existência de Cabaceiras.