Os jornais anunciam que este ano a obra musical de Noel Rosa estará se tornando de domínio público, porque se completam 70 anos da morte do autor. Parece menos. Se a gente pega as músicas de Noel, sente na maioria delas uma simplicidade poética e uma sutileza que parecem ser do ano passado. Comparadas com as letras de Noel, são algumas letras recentes de Chico Buarque que (sem discutir o mérito da qualidade poética) parecem vir de uma época mais rebuscada, mais erudita, menos coloquial. A comparação procede. Chico e Noel estão sempre próximos em minhas referências, porque sou da geração que foi correndo à loja da Olacanti para perguntar a Dora se já tinha chegado o LP de Chico Buarque, no qual já sabíamos que iríamos encontrar seu grande sucesso “A Banda” e suas duas obras-primas, “Olê Olá” e “Pedro Pedreiro”. E a imprensa carioca saudava o aparecimento do maior letrista do Rio de Janeiro desde Noel Rosa.
Não se pode conceber duas vidas mais diferentes nem em dois talentos tão parecidos. Chico e Noel têm um olho meio Cartier Bresson para distinguir personagens fugidios ou pequenas situações do cotidiano, e extrair deles meia dúzia de estrofes que os fotografam de dez ângulos diferentes e inesperados. Depois, guardam a máquina na bolsa e vão embora assobiando, como se aquilo fosse a coisa mais simples do mundo. O Noel Rosa de “Três Apitos”, “O Orvalho vem Caindo” ou “Conversa de Botequim” gerou o Chico Buarque de “Rita”, “Juca”, “Você não ouviu”, “Januária” ou “A Televisão”. São as décadas de diferença entre os dois, e a inegável erudição de Chico, que o levam a explorar formas mais complexas que Noel, pela formação que tinha e pela vida que levava, não se sentiria impelido a experimentar. Noel talvez pudesse ter composto “Quem te viu, quem te vê” ou “Carolina”, mas, talento à parte, não posso imaginá-lo fazendo experiências como “Construção” ou “Geni e o Zepelim”.
Noel foi quase um cantador de viola. Dada uma estrofe de forma fixa, cada estrofe com o mesmo número de versos, cada verso com o mesmo número de sílabas, ele parecia capaz de derramar texto dentro delas e preenchê-las como quem enche copos sucessivos sem que fique uma gota dágua sobrando ou faltando. Sua espantosa fluência verbal fazia tudo parecer muito fácil. Sua vida boêmia e seus desenganos amorosos lhe deram uma percepção amarga das coisas que se vê em “Último desejo”, “Pra que mentir”, “Filosofia”, “Quantos beijos”... Diz-se dele (como de tantos compositores do samba) que compunha batucando na mesa do botequim, rabiscando em guardanapos, esperando o bonde. Fazia música de ocasião, atendendo à provocação de um amigo, ou estimulado pela melodia nova que o parceiro acabava de dedilhar ao violão. Como o chope num barril, tinha poesia sob pressão, gelando na serpentina, esperando apenas o momento de abrir a torneira. Em 2007, sua obra retorna ao domínio público, ao ambiente que a produziu.