quarta-feira, 3 de junho de 2009

1070) Deus e o Mundo (20.8.2006)



Atribui-se a Einstein uma frase (não lembro o teor exato, mas o sentido é este) dizendo que acreditar na existência de Deus não significa negar a do Universo. E Jorge Luís Borges dizia espantar-se com a importância exagerada que a maioria das religiões atribuía aos nossos parcos anos sobre a Terra, porque cabia a eles determinar se passaríamos a Eternidade no paraíso ou no inferno. Em todos os sistemas de Fé parece haver uma tensão constante, com re-aproximações e re-afastamentos, entre o conceito de Deus e o do Mundo, como se este fosse imperfeito demais para ter sido criado por aquele, ou como se a existência daquele nos desobrigasse de explicar o que acontece neste.

O cientista, o cara que não acredita em Deus, fica muitas vezes preso a um racionalismo minucioso, microscópico, e perde a visão de conjunto. É como um sujeito que diante de um texto escrito se detivesse diante da primeira letra, um B, e começasse a pensar: “O que significa esta letra? Como chegou aqui? Quem a colocou? Com que intenção?” Ele passa a vida inteira nessa letra, depois dedica-se à segunda, depois à terceira, e nunca lhe ocorre soletrar a palavra.

Conan Doyle tem um conto divertido, “A esposa de um fisiologista”, sobre um desses cientistas empedernidos, materialistas até a medula, o dr. Ainslie Grey. Há uma cena em que ele está tomando o café da manhã com sua irmã Ada, uma moça religiosa. E eles têm este breve diálogo: “—Você não tem fé, disse ela. – Tenho fé nas grandes forças evolutivas que estão conduzindo a espécie humana a uma determinada meta, desconhecida, porém elevada. – Você não acredita em coisa alguma. – Ao contrário, minha querida Ada: acredito na diferenciação do protoplasma”.

Reli este conto agora, e lembrei que, tendo-o lido pela primeira vez por volta dos dez anos de idade, ele deve ter sido uma influência decisiva na minha opção precoce pelo agnosticismo. Quando alguém me perguntava se eu acreditava em Deus, eu dizia que sim, porque não era idiota, mas pensava comigo mesmo: “Acredito na diferenciação do protoplasma”. Não me perguntem o que é isto. Ainda hoje não sei.

Ou melhor: vou arriscar, sem consultar livro algum. Imagino que protoplasma seja uma espécie de substância biológica primordial, mas uma substância uniforme, estática. No momento em que houve algum tipo de diferenciação (a diferenciação dos sexos, por exemplo) isto desencadeou uma série de processos evolutivos que levaram ao surgimento dos protozoários, amebas, peixes, mamíferos, primatas e finalmente humanos. Parece absurdo? Leiam Augusto dos Anjos.

Para alguns, é mais fácil acreditar na existência do átomo (que nunca vimos e jamais veremos) do que na de Deus, e vice-versa. Tudo depende das razões emocionais que nos levam a aceitar esta explicação, e não aquela. Mas para alguns basta contemplar o Universo para acreditar em Deus, e basta ver um casal de mãos dadas para agradecer aos céus pela diferenciação do protoplasma.

1069) Hipocrisia com boas intenções (19.8.2006)



Freud dizia que uma ocorrência típica do “Unheimlich” (o estranho, o sinistro, o assustador) é quando um símbolo adquire as funções e o significado da coisa simbolizada. O nome de algo perigoso é evitado porque contém o perigo daquilo que representa. Os primitivos não dizem o nome do Diabo, preferindo referir-se a ele por circunlóquios: O-Não-Sei-Que-Diga, O-Coiso, O-Cão... Nossos médicos e enfermeiros, representantes da Ciência, também evitam dizer “câncer”, preferindo dizer “C. A.”, e assim por diante. Chamamos a isto “pensamento mágico”: tocar no nome é tocar na coisa.

Um circunlóquio parecido ocorre hoje com a Rede Globo, que evita dizer o nome PCC (Primeiro Comando da Capital), preferindo dizer “a facção criminosa”, ou “a facção que controla os presídios paulistas”. Já vi alguém argumentando que usar o nome seria de certa forma oficializar a existência do PCC (como se ele precisasse disto para agir). Faz um certo sentido. Quando um novo governo chega ao poder, ainda mais se chegou por vias não-democráticas, pede para ser oficialmente reconhecido pelos outros. Há ditaduras que estão no poder há décadas e não foram reconhecidas pela comunidade internacional. Reconhecer que uma entidade existe é, de certa forma, admitir sua existência, concordar com sua existência.

Faz sentido, sim, mas somente dentro dos jogos de linguagem da Diplomacia, que algum espirituoso já definiu como “a hipocrisia com boas intenções”. Um bom diplomata sempre sabe que não se pode ser totalmente franco, dizer as coisas como as coisas são, ou como achamos que elas são. É sempre necessário usar eufemismos, circunlóquios, perífrases, aproximações, ambiguidades. A Globo se recusa a dizer PCC porque “só existe o que sai na Globo” – um pensamento corrente em vários setores da emissora, e do qual grande parte da própria população brasileira compartilha. Acho que William Bonner só vai olhar para a câmara e dizer essa sigla quando for uma notícia assim: “Uma delegação de representantes do PCC foi recebida no Ministério da Justiça, para dar início às reuniões de reforma do Código Penal...” Chega me dá um calafrio.

O seqüestro de dois funcionários da Globo e a veiculação no ar de uma mensagem da facção podem ser considerados, em conjunto, um episódio decisivo dos tempos atuais. A última vez que isso aconteceu foi em 1969 quando a guerrilha urbana seqüestrou o embaixador norte-americano Elbrick. O PCC, assim como o Comando Vermelho e todos os grupos congêneres, é o filho bastardo do crime comum com o crime ideológico, e foi concebido no presídio da Ilha Grande, onde a falta de inteligência da ditadura militar colocou guerrilheiros e bandidos para conviver. No tempo da ditadura, a gente não podia citar Karl Marx num jornal, tinha que dizer “um filósofo barbudo”, ou coisa equivalente. Como se bastasse não dizer o nome para que a Coisa deixasse de existir.

1068) Iluminismo e ilusionismo (18.8.2006)





Um repórter da Rede Globo foi seqüestrado em São Paulo pelo PCC (Primeiro Comando da Capital). Os bandidos condicionaram sua libertação à divulgação, na TV, de um vídeo-manifesto protestando contra o Regime Disciplinar Diferenciado, em prática nos presídios paulistas. Houve um detalhe que a imprensa divulgou mas não discutiu, ao que eu saiba. Na terça-feira, o jornal O Globo comparou o texto do manifesto do PCC com o texto de um documento que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária havia divulgado em abril de 2003.

Vejam os dois textos. O do Conselho diz, a certa altura: “(...) o Regime Disciplinar Diferenciado agride o primado da ressocialização do sentenciado, vigente na consciência mundial desde o iluminismo e pedra angular do sistema penitenciário nacional (...)” Diz o manifesto lido pelo representante do PCC: “O Regime Disciplinar Diferenciado agride o primado da ressocialização do sentenciado vigente na consciência mundial desde o ilusionismo e pedra angular do sistema penitenciário”. Há outros trechos quase iguais, mas o que me interessa é este.

Onde se lia “Iluminismo”, lê-se “ilusionismo”. Houve quem desse risada, vendo nisto uma prova no analfabetismo e da desinformação dos bandidos. Coitados! Nunca ouviram falar no Iluminismo, no “Enlightenment”, na Idade das Luzes, que deu origem à Revolução Francesa e à Declaração Universal dos Direitos do Homem. Foi uma fase (na filosofia, nas ciências exatas, nas ciências sociais e jurídicas) comparável ao que o Renascimento representou nas artes da Europa.

Freud dizia (e se não o disse assim, digamos que o tivesse dito) que todo erro revela uma verdade oculta. Todo esquecimento, todo equívoco, toda troca involuntária de palavras, revela uma informação que estava doida para aparecer, estava pronta para ser trazida à luz, e que acabou escapando pela primeira brecha aberta à sua frente.

O Iluminismo acreditava no poder da Razão para mediar o contato entre o Homem e o Universo. A Racionalidade era a luz que vinha afastar as trevas e as superstições da Idade Média. Infelizmente, não conseguiu. A Razão pode muito, mas não pode tudo. Freud, produto avançado do Iluminismo, foi quem trouxe a este a amarga notícia. E o erro dos bandidos do PCC revela uma verdade dolorosa sobre as democracias de hoje. Porque elas não são governadas pela Razão, como se queria no século 18, e sim através do Ilusionismo: a manipulação das massas pelas telecomunicações, a distribuição de riquezas inexistentes através do capitalismo financeiro, a distorção da arte e do entretenimento através da hipertrofia de ficções manipuláveis como “fama” e “sucesso”, a cuidadosa eliminação de referências (quando não a perseguição explícita) a quem é do contra. O Ilusionismo, que aparece erradamente no manifesto dos bandidos, é a melhor descrição da sociedade que os produziu – e que agora não consegue destruí-los porque tem muita gente olhando.


1067) “Fuga de Nova York” (17.8.2006)



Peguei para rever o DVD deste filme de John Carpenter, do qual eu tinha uma vaga lembrança, pois vi somente na época do lançamento. Descobri agora que o filme é de 1981 e portanto está completando 25 anos, já saiu DVD-duplo comemorativo, e todas essas bugigangas com que o cinema americano ressuscita seus mortos e os bota para trabalhar de novo. Para um morto, Fuga de Nova York goza de boa saúde. Claro que não é um grande filme. E meramente como filme de ação parece uma produção da Disney, comparado com a brutalidade física e a crueldade mental dos filmes contemporâneos. É cheio de clichês, mas são clichês de uma época em que o clichê ainda provocava um sorriso de reencontro, e não uma careta de saturação.

No filme, a ilha de Manhattan foi transformada em prisão e cercada por muros. O avião do presidente dos EUA cai lá dentro, ele é sequestrado pelos presos, e cabe a um herói-bandido entrar ali e resgatar o figurão em menos de 24 horas. Dizem os adeptos do video-game que vários games se inspiraram neste filme, principalmente Metal Gear: Solid Snake, onde até o protagonista é copiado de Snake Plissken, o personagem aqui interpretado por Kurt Russell. O feedback recíproco entre indústria de filmes e indústria de games pode ter aqui um ótimo ponto de partida para um estudo. Os elementos básicos de um bom videogame de ação estão todos presentes. Uma missão suicida. A contagem regressiva com um limite mortal. Protagonista executando façanhas acrobáticas e tendo que improvisar estratégias para enfrentar os inimigos. Uma luta de ringue. Uma perseguição de carro por terreno minado. E assim por diante. Palpita-me que muitos rapazes que inventaram os games dos anos 1990 viram este filme quando adolescentes.

E o filme tem uma curiosa simbologia. Manhattan cercada de muros, helicópteros, arames farpados, como se fosse um Muro de Berlim ou a prisão de terroristas em Guantanamo, me parece uma poderosa metáfora para a má consciência dos norte-americanos. Uma reversão simbólica radical, expressa nas tomadas noturnas com a silhueta dos arranha-céus às escuras, mesmo habitados por milhões de presidiários. Esta ameaça é reforçada pela existência paralela dos “Crazies”, espécie de zumbis que habitam os esgotos e surgem pelos bueiros (o que conecta o filme com outro gênero florescente e muito apreciado pelos jovens: o filme de zumbis).


Manhattan se torna um “espaço interdito” como a mansão dos Nobile no Anjo Exterminador de Buñuel. Para os EUA é como a perda do próprio rosto (Vanilla Sky). É a criação, no seu próprio centro de poder, de um buraco-negro capaz de sugar para dentro de si o Ego (=o Presidente), que precisa ser resgatado por um filho bastardo do Bem com o Mal, híbrido de herói militar e criminoso condenado. O típico herói do filme de ação: desprezado e temido pelas autoridades (seus superiores) que o manipulam, odiado e respeitado pelos bandidos (seus iguais) que lhe cabe combater.