sábado, 14 de fevereiro de 2009

0800) “Reconhecimento de Padrões” (11.10.2005)



É o livro mais recente de William Gibson, que com Neuromancer inventou o movimento Cyberpunk da ficção científica, histórias baseadas na Realidade Virtual do mundo informático, na guerra-sem-quartel das megacorporações, e na vida de indivíduos meio marginais que tentam sobreviver na selva do capitalismo eletrônico. Em Reconhecimento de Padrões, Gibson consegue fazer um romance que não é ficção científica mas que não existiria, como concepção dramática e como visão do mundo, sem a ficção científica, sem o peculiar olho clínico que o escritor de FC tem para avaliar a realidade política, econômica e existencial de hoje.

Cayce Pollard é uma mulher com uma sensibilidade especial para perceber se um logotipo de uma empresa vai “funcionar” ou não. Ela ganha uma fortuna para dar palpites, pois tem uma memória abarrotada de informação da indústria da propaganda, e tem vivência profunda no meio das galeras da rua, para saber o que está sendo gerado no meio dessas tribos e que pode ser a mina-de-ouro da indústria cultural nos próximos anos. (Esta profissão não é inventada. Veja-se, p. ex., Street Trends – How Today’s Alternative Youth Cultures Are Creating Tomorrow’s Mainstream Markets de Janine Lopiano-Misdom e Joanne de Luca, Harper, 1997). Ao mesmo tempo, Cayce faz parte de uma subcultura virtual: a dos que acompanham “The Footage”, um conjunto de fragmentos enigmáticos de um filme que ninguém consegue identificar, e que aparecem aleatoriamente na Internet, em websaites obscuros. Ninguém sabe quem fez o filme, onde, quando, e por que motivo as cenas são fornecidas assim, como peças de um quebra-cabeças.

O livro é uma história de suspense, felizmente sem muitos tiros e socos . Tem mistério, espionagem internacional, briga-de-cachorro-grande entre megacorporações, e no meio disto o sonho impossível de um grupo de cinéfilos que se vêem diante do filme mais misterioso de todos os tempos. Os livros de William Gibson transcorrem num universo onde o conceito de “multinacional” foi substituído pelo de “pós-geográfico”. Seus personagens usam laptops e celulares o tempo todo, fazem vôos internacionais como quem compra cigarro na esquina, hospedam-se em hotéis caros, mas não se vê neles aquela ostentação de novos-ricos que é típica dos autores de best-sellers. Os personagens de Gibson são pessoas de um mundo do futuro que já existe. São instáveis, talentosos, ambiciosos, desconfiados, ingênuos, e capazes de ir até o fim para resolver um problema ou decifrar um mistério.

Pattern Recognition é o tipo mais corajoso de ficção científica: o que lida com a zona crepuscular onde diferentes épocas culturais e tecnológicas se entrelaçam. A certa altura, Cayce diz: “O futuro está lá, olhando para trás, em nossa direção. Tentando entender a ficção em que nos transformamos. E do lugar onde estarão, o passado por trás de nós parecerá a eles totalmente diverso do passado que nós, agora, imaginamos ter.”

0799) Arte Conceitual (9.10.2005)




(Saul Steinberg)

Para alguns, é uma praga que vem deteriorando o mundo artístico há quase um século. Para outros, um terreno que se abre, cheio de possibilidades fascinantes. 

Parece que estamos numa época de transição em que a técnica, na criação de uma obra de arte, parece recuar para segundo plano, e a idéia, o conceito, torna-se aquele elemento sem o qual nada mais tem sentido.

Os exemplos mais evidentes são nas artes plásticas, e a maioria das pessoas bota a culpa em Marcel Duchamp, que pegou um urinol de louça de um banheiro público e o colocou numa exposição com o título “Fonte”. 

Aí não parou mais. 

Uma artista expôs na Bienal centenas de cinzeiros furtados de hotéis e restaurantes. 

Outro artista expôs dentro de uma redoma a carcaça de um bicho, que foi apodrecendo aos poucos durante as semanas em que ficou exposta. 

Outro distribuiu saquinhos de plástico lacrados; eles foram cheios com “ar da montanha”, e ao abri-los o público recebia (conceitualmente) um pouco desse ar. E por aí vai.

Na literatura, já dei alguns exemplos aqui: um conto cujas palavras foram individualmente tatuadas na pele de centenas de participantes, um romance que consta apenas de sinais gráficos, etc. 

Na música clássica, tem aquela história do concerto que vai durar 600 anos ou da música que consta apenas de silêncio, por obra e graça do imperturbável John Cage. 

No cinema, tem aqueles filmes tipo Andy Warhol: Sleep, câmara parada mostrando durante 8 horas, sem cortes, um cara dormindo; Empire, câmara parada mostrando sem cortes, durante horas, o Empire State Building. E por aí vai.

Tenho uma teoria. Estas formas de arte são o derradeiro gesto de uma burguesia intelectualizada em busca de um campo de batalha onde a única arma seja aquela que ela mais domina: a idéia pura, o jogo de conceitos, o refinado xadrez intelectual de quem tem base acadêmica e filosófica, de quem tem acesso às teorias psicanalíticas, semióticas, estruturalistas, pós-modernas, o escambau. 

De repente, saber pintar com pincéis e tinta-a-óleo, ou saber técnicas de água-forte ou litogravura, é coisa para meros artesãos. Saber contar uma história, desenvolver personagens... o mercado está cheio de Writer’s Guides ensinando isto. Escola de música? Qualquer joão-ninguém hoje em dia tem acesso aos segredos da orquestração, do contraponto.

Ironicamente, os pretendentes-a-artista muito pobres não sentem atração pela Arte Conceitual. Eles bem que poderiam enfiar as mãos nos seus bolsos eternamente vazios e danar-se a produzir “ready-mades” ou instalações invisíveis. Mas não, quanto mais pobres mais querem meter a mão na massa, manipular materialidades, moldar substâncias e formas, domesticar instrumentos. 

E do outro lado os artistas da “crème de la crème” se refugiam, não numa torre de marfim, mas na torre imaterial, virtual, holográfica, da Arte Conceitual, onde a relação artista/público é como uma relação sexual por torpedo-no-celular ou uma luta de boxe por email.





0798) Os livros perdidos (8.10.2005)



Desde os vinte anos sonho em escrever um livro intitulado “Os livros perdidos”: uma história daquelas obras literárias ou filosóficas que foram destruídas, extraviadas, censuradas, ou que de alguma outra maneira perderam-se para sempre, embora saibamos que chegaram a ser escritas. O exemplo mais famoso é o segundo livro da Poética de Aristóteles, cuja redescoberta imaginária é o ponto principal do enredo de O Nome da Rosa de Umberto Eco. E agora abro o jornal (ou melhor, clico num link) e vejo diante de mim uma longa resenha, no Times Online, de The Book of Lost Books, de Stuart Kelly, onde ele realiza meu sonho sem me pedir licença.

A julgar pela resenha, Kelly investiga todos os casos clássicos de livros perdidos. Tem, por exemplo, o episódio do primeiro manuscrito da História de Revolução Francesa de Thomas Carlyle. Reza a lenda que quando Carlyle terminou de escrever a gigantesca obra juntou os milhares de páginas manuscritas e deixou o monte em cima da mesa, para levá-lo no dia seguinte a Londres, para a editora. Quando acordou, não viu os papéis, e perguntou à empregada onde estavam. “Aqueles papéis velhos?” perguntou ela. “Ah, usei para acender a lareira”. Carlyle encheu o cachimbo, deu umas baforadas, foi no terraço, ficou pensativo durante meia-hora, aí voltou, sentou-se à escrivaninha, pegou pena e papel, escreveu: “Capítulo 1”. E refez o livro todo.

Um episódio semelhante ocorreu com Robert Louis Stevenson. Reza a lenda, mais uma vez, que durante um período brabo da tuberculose ele teve uma noite de pesadelos, e trancou-se no quarto por três dias, escrevendo sem parar. Depois, reuniu a família e leu em voz alta a história do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde. Sua esposa, Fanny, cuja opinião ele tinha em alta conta, desaprovou a história. Disse que lhe faltava uma dimensão alegórica, que era apenas um relato brutal. Irritado, Stevenson jogou o manuscrito no fogo, voltou para o quarto, e trabalhou mais três dias, reescrevendo tudo: e é esta segunda versão que temos agora como O Médico e o Monstro.

O leitor mais sagaz virá me dizer: “Bem, neste caso não se trata de obras perdidas para sempre. Os dois livros foram reescritos, não foram?” Sem dúvida. Os livros que conhecemos hoje são a segunda versão; mas quem me garante que a primeira não era melhor, ou pelo menos substancialmente diversa, a ponto de justificar uma leitura independente? O simples fato de sabermos que algo foi jogado ao fogo nos provoca uma angústia automática, pelo que há de irremediável neste gesto. Ficamos com o temor incurável de que a verdadeira obra-prima tenha se perdido, e o que herdamos é um rascunho desajeitado, uma tentativa frustrada de recompor algo que se foi para sempre. Não importa se é a gigantesca reconstituição histórica de Carlyle, ou se é a compacta e arrepiante noveleta de Stevenson; qual das duas foi mais difícil de refazer, antes que se dissipasse a memória do texto destruído?

0797) Encarnado e esculpido (7.10.2005)




A rigor, esta coluna deveria intitular-se “Cagado e cuspido”. Mas achei que podia ofender os olhos de um leitor casual. Afinal de contas, uma manchete de jornal ou título de coluna é como a fachada de uma casa: visível a qualquer transeunte que passe e dê uma olhada. 

Se a gente quiser usar palavras mais polêmicas, melhor guardá-las para aqui, para a privacidade do corpo do texto, que é como o interior da casa, onde só entra quem é convidado. Sendo assim, caro leitor, puxe uma cadeira e vamos examinar o assunto.

Você já deve ter ouvido esta expressão: “Fulano é a cara do tio dele, cagado e cuspido!” Eu tinha crises de riso na infância toda vez que escutava isto, porque sou bom visualizador, só que não visualizava a semelhança, e sim o sujeito coberto das respectivas substâncias. 

Um dia alguém (meu pai ou minha irmã Clotilde, grandes pontificadores sobre questões deste tipo) me explicou que esta era uma corruptela de uma expressão mais respeitável: “encarnado e esculpido”. 

Quando um cara parecia muito com outro, portanto, era como se fosse este outro “encarnado” (ou seja, corporificado em carne) e “esculpido” (representado numa estátua à sua imagem e semelhança).

Não passou muito tempo e esta versão surgiu numa edição melhorada. É impressionante como as pessoas acabam encontrando sempre uma maneira de melhorar uma história já existente. 

Esta versão ponto-um dizia que a expressão era na verdade: “em Carrara esculpido”, ou seja, esculpido em mármore de Carrara, aquela ilha italiana que produz o melhor mármore do mundo (e que a esta altura deve estar “dessa finura”, de tanto que já extraíram o precioso mineral). 

Então, se eu disser que George W. Bush é Ronald Golias “em Carrara esculpido”, não estou celebrando a beleza apolínea de um ou de outro, mas apenas indicando o quanto se parecem.

Ocorre, amigos, que em inglês existe uma expressão parecida, e que tem exatamente o mesmo significado: “Fulano is the spit and image of Sicrano”, ou “Fulano is the spitting image of Sicrano”. “Spit” é cuspe, e aí eu quero saber de onde veio o nosso “cuspido”, se foi do “spit” inglês ou do nosso próprio “esculpido”. É muita coincidência, não é mesmo? 

Eu tenho pra mim que essas explicações todas são invenções de jornalistas sem assunto, portanto vou inventar mais uma. Entre os antigos romanos, quando se fazia uma estátua representando uma pessoa, e a semelhança era muito grande, era costume que o retratado umedecesse com sua própria saliva a testa da estátua, estabelecendo com ela um laço de “magia simpática”, para que nada de mal lhe adviesse. Daí dizer-se que Fulano é “encarnado e cuspido” a imagem de outro.

É fraquinha, não é mesmo? Não importa. É assim que surge a maioria dessas explicações: improvisadas em-cima-da-perna, fazendo um mínimo de sentido, apenas o suficiente para serem passadas adiante. Podem passar esta; é de graça. Anotem a data, e venham me dizer daqui a cem anos.





0796) Pegando verso alheio (6.10.2005)




(o cearense Humberto Teixeira)

Uma das canções mais belas de Caetano Veloso é “Terra”, uma canção de amor feita para um planeta, e não para uma pessoa. Um dos seus versos tocam de maneira especial a nós, leitores do “Jornal da Paraíba”: 

Na vertigem do cinema, 
mando um abraço pra ti, 
pequenina, como se 
eu fosse o saudoso poeta 
e fosses a Paraíba... Terra... Terra... 

Eu adoro estes versos. Ele diz que ao ver a Terra lá do espaço sideral (pelas câmaras da nave Apollo) sente saudade dela, ao vê-la tão pequenina, e o que lhe vem à mente é a canção de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira: 

Hoje eu mando um abraço pra ti, pequenina... 
Paraíba masculina, mulher macho sim senhor. 

Sempre achei poeticamente belo um baiano ver o planeta Terra e se lembrar da Paraíba através dos versos de um poeta cearense, cantados por um cantor pernambucano.

Assim como existem as invisíveis fronteiras geográficas separando territórios que em última análise são todos um só, existem também as barreiras autorais separando versos e obras que estão na memória e no inconsciente de todos, e delimitando o que pertence a quem. 

Lembro-me de uma época, quando eu morava na Bahia, de passar horas discutindo em mesa de bar esta e outra canção de Caetano, “Xangô Menino”, onde a certa altura ele diz: “Olha pro céu, meu amor, veja como ele está lindo...” 

Meus antagonistas (a Bahia se divide em pró- e contra-Caetano, como o resto do Brasil) brandiam estes versos como prova de que Caetano plagiava Luiz Gonzaga: “Tá vendo? Ele rouba os versos alheios e bota nas músicas dele! E isso é porque é Luiz Gonzaga! Imagine a quantidade de versos de gente que a gente não conhece! É um plagiário!”

Não, não é. Existem várias palavras para descrever o que é isto. Uma delas é “citação”: quando no corpo de uma obra inserem-se trechos de obra alheia, não só pelo sentido literal do trecho em si, mas também para fazer uma referência (citação, homenagem, crítica, contradição) a essa obra, que se pressupõe conhecida pela maior parte do público. 

Me parece óbvio (e deve ter parecido a Caetano) que todo mundo iria perceber de cara que aqueles versos eram citações de Luiz Gonzaga. Não havia a menor intenção de ocultar o autor original e reivindicar para si a autoria da obra; é a atitude de má-fé que caracteriza o plágio.

Alguns versos, de tão banais e tão repetidos por todo mundo, não têm mais autoria certa, viraram “folclore”. Versos como “sem você não sei viver”, “eu vou morrer de saudade”, etc. 

Se eu coloco numa letra minha um verso como “Pois quem mora lá no morro vive perto do espaço sideral”, estou fazendo uma citação a Herivelto Martins (“Ave Maria do Morro”), mas no final do verso dou uma “virada” que muda o sentido do verso; é um verso novo. 

É o mesmo caso de “Terra”: são as palavras de Humberto Teixeira, mas encaixadas num contexto sintático e poético que lhes dá um novo significado. Plágio? Jamais. É um tipo de citação que mostra o talento do citador e a importância do citado.