Em seus Notebooks, Nathaniel Hawthorne anotou para si próprio (e para quem interessar pudesse) a seguinte tarefa:
“Escrever um sonho, que deverá se assemelhar ao perfil de um sonho verdadeiro, com todas as suas inconsistências, suas excentricidades, sua falta de propósito – e que no entanto tenha uma idéia central a percorrê-lo de ponta a ponta. Desde o início do mundo até este ponto tão avançado de sua história, um texto assim jamais foi escrito”.
Muita gente há de discordar desta afirmativa final. Para os críticos, a linguagem desconexa, híbrida, aparentemente insensata do último livro de James Joyce (Finnegans Wake) não é nada mais que a sintaxe do sonho transposta para a narrativa verbal.
Muitos outros experimentos da literatura de vanguarda podem reclamar a mesma condição. O ano passado em Marienbad, de Robbe-Grillet, filmado por Alain Resnais, é uma narrativa que tem do sonho as recorrências inexplicáveis, a amnésia generalizada, a ambientação asfixiante, a impressão de desenraizamento.
O cinema, principalmente o cinema surrealista, chegou perto do que propunha Hawthorne.
O exemplo clássico é Um cão andaluz de Buñuel, mas filmes como Entreato de René Clair ou, nos tempos recentes, algumas experiências de David Lynch têm algo do clima ominoso dos sonhos, em que as imagens e as situações nos produzem emoções que desconhecemos em nós mesmos, emoções que não têm uma justificativa, que não são o medo, a repulsa, a irritação ou a curiosidade que experimentamos numa situação regida pela lógica e pelo bom-senso.
Na literatura, o discurso é forçosamente encadeado por cláusulas, pelos “porquês” e os “comos” da sintaxe, o que dá uma aparência de lógica às situações mais desconexas. No cinema, o que temos é sensorialidade pura (imagem + som), presentificação de ambientes e de situações sem tentativa ou possibilidade de explicá-los.
No século 19, quando o Realismo literário foi considerado por muita gente uma espécie de triunfo final, de “Fim da História” na literatura, grande parte da literatura fantástica optou pelo sonho como o álibi principal para os eventos impossíveis que narrava. Depois de passar por uma série de peripécias, o protagonista, nas últimas linhas, acordava de volta em sua poltrona ou sua cama.
Machado de Assis é um que recorreu repetidamente a este artifício – o exemplo mais famoso e mais brilhante é o episódio do hipopótamo, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas. Sonhos, delírios, alucinações, foram um pretexto para justificar os passeios dos personagens pelos guetos interditos do Fantástico.
O trecho de Machado, aliás, é uma resposta curta mas cabal à provocação de Hawthorne. E se destaca na obra do autor carioca, que sempre foi uma obra clássica, racionalista, governada por uma lógica implacável. Brás Cubas, seus emplastros e seu hipopótamo são um bendito alívio, uma sombreada trégua de maluquice no sol causticante de tamanha lucidez.