segunda-feira, 6 de outubro de 2008

0578) As duas vidas de Bob Dylan (25.1.2005)



Li num um livro sobre rock um trecho a respeito de Bob Dylan, que me parece refletir um engano, ou pelo menos uma visão distorcida, do que seja a criação artística. Diz Ian MacDonald: “Numa turnê incessante que durou de setembro de 1965 até junho de 1966, Dylan mergulhou nas drogas e num estado quase suicida, incapaz de assumir mais compromissos. Em 29 de julho ele teve um acidente de moto que se tornou uma desculpa para cancelar todos os contratos. Dali até o outono de 1967 ele viveu recluso em Woodstock, Estado de New York, fazendo gravações informais com o grupo The Band. Sua carreira nunca recobrou o mesmo ímpeto de antes, e a qualidade de seu trabalho entrou em declínio permanente.”

Quem diz isto é o insuspeito Ian MacDonald, que volta e meia estou citando nesta coluna. Os fatos estão corretos, mas discordo da interpretação. Dylan geralmente é descrito como um cantor folk de canções de esquerda que se deixou seduzir pelo rock, adotou a guitarra e ficou milionário. Na verdade, ele é um camaleão musical que sempre ouviu blues e rock, e entrou na música pela porta da canção folk porque era este o ambiente que predominava no Village de New York, quando ali desembarcou. E já chegou quebrando tradições. Os músicos folk novaiorquinos eram pesquisadores e colecionadores de canções tradicionais, que executavam com rigor arqueológico. Dylan foi o primeiro que ousou escrever canções folk. Isso não passava pela cabeça dos demais. O grande impacto de músicas como “Blowin´in the Wind” foi abrir os olhos de todos para o fato de que músicas tradicionais como “Lord Randall” ou “Barbara Allen” talvez tivessem sido escritas por garotos de 22 anos como aquele, só que no século19.

O período do rock e das drogas é descrito por Bob Spitz em seu livro Dylan, cuja utilidade maior é ser uma “biografia contra”, revelando inúmeros episódios de mau-caratismo de Dylan, principalmente no modo como tratava tanto as mulheres quanto os amigos que não igualaram seu sucesso – Phil Ochs, que o idolatrava, acabou se suicidando. Curiosamente, esta fase de crueldade e drogas foi também a que se considera a mais criativa de Dylan: o período de março de 1965 (o lançamento de Bringing it all Back Home) até o acidente, em julho de 1966. Os fãs de Dylan consideram seus discos e shows dessa época os melhores de toda sua carreira. E é verdade: nunca a voz de Dylan esteve tão límpida e expressiva quanto no CD duplo Live 1966 -- The Royal Albert Hall Concert.

O acidente serviu a Dylan para sumir por quatro anos, criar seus filhos, mergulhar no estudo da música tradicional americana, e fugir do delírio sexo-drogas-e-rock-and-roll que acabaria em breve matando Brian Jones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison e outros. O “declínio permanente” a que MacDonald se refere é uma ilusão. Houve dois Dylan. O primeiro deles morreu aos 25 anos, como o primeiro Rimbaud, o Rimbaud poeta, morreu aos 19.

0577) A nobreza obriga (23.1.2005)




(Rudyard Kipling)

Um poema de Bertolt Brecht (“A Lenda da Origem do Livro do Tao-Te-King, de Lao-Tsé”) conta como surgiu o Tao Te King, ou Livro do Caminho Perfeito, o mais enigmático e mais interessante livro da filosofia oriental.

Brecht relata que aos 70 anos Lao-Tsé pretendia se aposentar, aí empacotou suas coisas, montou num boi (costume chinês) guiado por um rapazinho, e partiu. Ao chegar na fronteira um guarda da alfândega perguntou quem era ele, para onde ia. O rapaz explicou. O guarda bateu um papo com o filósofo, achou interessantes as coisas que ele disse, aí propôs: “Eu deixo o senhor passar, se o senhor escrever essas coisas. Vai que depois o senhor morre, ou não volta mais...”

Durante sete dias Lao-Tsé ficou hospedado na cabana do guarda, escrevendo. Ao partir (para sempre), deixou para trás um manuscrito: o “Tao Te King”.

Num poema de Rudyard Kipling (“A Ponte de Akbar”) o Rei da Índia (ou coisa equivalente), Muhammed Akbar, encarrega seu Vice-Rei de construir a mais bela mesquita do mundo, e vai para a cidade de Jaunpore para supervisionar a construção.

Uma noite, ele vai passear disfarçado na beira do rio (como faziam os califas das Mil e Uma Noites, para saber o que o povo dizia de seu governo), quando vê uma mulher junto a um barco, praguejando contra o barqueiro ausente. É a Viúva do Poteiro, uma figura folclórica local. O Rei se oferece para levá-la ao outro lado do rio, remando.

O Rei começa a remar, e a mulher esculhamba com ele o tempo todo: “Já não basta meu atraso e o barqueiro não aparecer, quem aparece é um jumento como esse, que nem remar sabe!” O Rei na dele, calado.

A Viúva começa então a esculhambar com o Vice-Rei. “Aquele idiota vê a gente o dia inteiro aqui, sujeitos aos crocodilos e às tempestades, e inventa de construir uma mesquita, quando sabe que tudo que a gente precisa é uma ponte!”

O Rei a deixa sã e salva do outro lado, e ao tentar abraçá-la em despedida leva uma sapatada na cara, pelo desaforo. Volta ao Palácio, chama o Vice-Rei e diz: “Suspende a mesquita, e constrói uma ponte, pra ver se aquela bruxa sossega.” A Ponte está lá, até hoje.

O guarda-da-fronteira e a viúva são parceiros no livro e na ponte. Um sujeito sábio não tem medo de escutar os outros, e um sujeito poderoso não tem medo de admitir que cometeu um erro. Um filósofo não é apenas um cara que tem boas idéias, ele sabe reconhecer uma boa idéia alheia.

“Noblesse oblige”. A nobreza obriga a tratar nobremente os que não são nobres, por compreender que nem todos o são. Ouvir com atenção os conselhos dos iletrados, e tratar os mal-educados com cortesia. Nobre é um sujeito, rico ou pobre, que impõe a si mesmo um padrão elevado, e procura puxar para esse nível de comportamento ele mesmo e todas as outras pessoas com quem se relaciona.

Ser nobre não é ser superior, é reconhecer que existe um modo superior de ser, e que todos, sem exceção, devem se esforçar para ser assim.


O poema de Brecht, em tradução inglesa:
http://www.penninetaichi.co.uk/index_files/Page1090.htm

O poema original de Kipling:
https://www.poetryloverspage.com/poets/kipling/akbars_bridge.html





0576) Harry Potter vs Tolkien (22.1.2005)


(J. R. R. Tolkien)

O sucesso das séries “Harry Potter” e “O Senhor dos Anéis” tem levado muita gente a colocar os dois no mesmo saco. Afinal de contas, são muitos os pontos que as duas obras têm em comum. Ambas são de autores britânicos, abordam um universo fantástico, têm um poderoso apelo junto aos jovens, vendem milhões de livros no mundo inteiro, deram origem a filmes que também tiveram enorme sucesso. Isto faz com que muita gente raciocine como certa vez vi alguém dizendo: “Está faltando quem faça literatura de boa qualidade, e isso cria um vácuo por onde acabam entrando essas coisas tipo Harry Potter, Senhor dos Anéis...”

Peço licença para discordar. Peguemos os livros de J. K. Rowling. Ela não é uma grande estilista, sua imaginação é vulnerável a clichês (mas só percebe isto quem lê muita Fantasia inglesa), e parece ter uma tendência a escrever de forma cada vez mais prolixa. Tirando isto, seus livros são excelentes aventuras para garotos na faixa dos 8 aos 14 anos (estou falando garotos europeus, pois nem todo garoto brasileiro de 8 anos lê um livro sem figuras daquele tamanho). Têm histórias bem imaginadas (dentro das convenções do gênero), um protagonista interessante. E têm um forte senso de finalidade: o leitor sabe que cada um dos sete livros previstos irá narrar um dos sete anos necessários para a formatura de Harry como feiticeiro na escola de Hogwarts. A própria Rowling, na TV, mostrou certa vez um caderno onde ela diz ter a sinopse de todos os livros. O final já existe. Todos esperam chegar lá um dia.

Harry Potter é um entretenimento agradável, que não faz mal nenhum a um garoto, pelo contrário, dá-lhe a bendita e inesquecível experiência de “ler um livro grosso até o fim”. Li apenas os dois primeiros, e não tenho nada contra.

O Senhor dos Anéis é outra história. Tolkien é um erudito, um estilista, um poeta, e um indivíduo de pensamento profundo, com idéias vastas e complexas sobre o mundo, e que escolheu o gênero da Fantasia Heróica para exprimir estas idéias. Compará-lo com J. K. Rowling é como comparar Ingmar Bergman com George Lucas. Tolkien é um autor do mesmo time de (no Brasil) Guimarães Rosa, Ariano Suassuna e Euclides da Cunha. Pertence a uma linhagem literária de enorme valorização da tradição, do nacionalismo, e da firme convicção de que o Mundo é um campo de batalha onde se defrontam o Bem e o Mal. Seu estilo é um tanto pesadão mas clássico; os poemas que ilustram seus romances são obras impecáveis. O mundo fantástico que criou não tem paralelo. Pode-se discordar dele, mas não negar sua estatura.

Rowling e Tolkien não surgem num vácuo de ausência de boa literatura. Surgem num contexto em que a literatura fantástica vem sendo reavaliada e recriada por escritores e leitores, bem à frente, com a crítica tentando alcançá-los pouco a pouco. O mais notável deste processo é que ele seja simbolizado por autores tão distantes e tão diferentes quanto estes dois.

0575) Bezerra da Silva (21.1.2005)



Morreu o velho malandro Bezerra da Silva, e com ele um dos meus sonhos de compositor: ter uma música gravada por uma das figuras mais marrentas e mais divertidas da cena do samba carioca. Mandei um samba uma vez, ele não gravou, eu dei de ombros e pensei que na próxima tentativa teria mais sorte. A próxima tentativa agora vai ser “na Gulora”, como dizia minha mãe. Mas aí a concorrência vai ser fogo, vou disputar com João Nogueira, Beto Sem Braço, um monte de gente.

Sempre achei Bezerra da Silva o típico carioca de morro. Tinha aquela fala arrastada, uma entonação de voz que é uma mistura de cautela automática, empáfia-de-pequenino, ressentimento atávico, desdém pelo interlocutor, tudo revestido por aquela polidez formal que os faz tratar a gente na base do “aí, campeão, tudo bem?”, “olá, bacana, como é que tá a parada?”, esse tipo de coisa. Malandros mulatos que ao tratar com os brancos de classe média fazem questão de se comportar nos-conformes, mas sempre deixando claro que, mesmo no momento em que nos apertamos as mãos, existe um Oceano Atlântico de navios negreiros a nos separar.

Nunca o encontrei pessoalmente; soube que havia se tornado evangélico antes de morrer. Como diria um amigo meu, cínico até a medula, “Rapaz, esse negócio de ficar se aproximando do Céu é perigoso...” O mais engraçado é que só depois de muitos anos aqui no Rio foi que eu descobri que Bezerra era nordestino. Geraldo Azevedo me contou que quando ele e Alceu defenderam “Papagaio do Futuro” num Festival, Bezerra era o zabumbeiro do grupo. Mal acreditei, porque nada no sotaque e na atitude dele lembrava o Nordeste. A verdade é que Bezerra veio para o Rio com 15 anos, durante a II Guerra; era um menino, e desembarcou num Rio de Janeiro que ainda não tinha sido tomado de assalto por Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Foi o sucesso posterior de Jackson que o atraiu para a música, e aqui entra um detalhe que diferencia Bezerra de todos os outros, pois estudou violão clássico, e sabia ler partitura. Uma vez vi uma entrevista dele para a TV em seu apartamento, junto de um piano, e pensei: “Mas olha o inchirimento...” Não era inchirimento, era preparo, mesmo.

Bezerra foi o terceiro estágio da migração nordestina. O primeiro, com Gonzaga, era o retirante que só pensa na terra que deixou para trás. Quantas músicas há, de Gonzaga, celebrando o Rio? Pouquíssimas. O segundo estágio é Jackson, que já não é o nordestino do Sertão, mas o da Feira de São Cristóvão, com suingue urbano, vivência da indústria cultural (rádio, orquestra), perfeitamente integrado ao Rio. O terceiro é Bezerra, onde o miolo nordestino foi totalmente recoberto por uma capa espessa de carioquidade explícita e agressiva. Ao contrário dos outros dois, ele fala em bandidagem, em maconha, em assaltante, em revólver, em polícia. A gente só entende a relação Nordeste-Rio se entender a história dessas três gerações.