segunda-feira, 29 de setembro de 2008

0566) Quaderna e a monarquia (11.1.2005)



No Romance da Pedra do Reino, o narrador, Dom Pedro Dinis Quaderna, é descendente dos fanáticos do movimento messiânico da “Pedra Bonita”, o qual redundou em 1838 no massacre de dezenas de pessoas. Trazendo em si o sangue desse bisavô (“El-Rei Dom João Ferreira-Quaderna, O Execrável”), ele sonha em restaurar um Império brasileiro e tornar-se soberano, valendo-se da lógica simples segundo a qual Rei é um sujeito que se auto-proclama Rei e massacra os discordantes. A História é escrita pelos vencedores. O Trono é de quem ganha a guerra.

Não que Quaderna tenha em si esse impulso Macbethiano. Longe disso. Sua vida, na Vila de Taperoá, na década de 1930, é organizar cavalhadas, administrar uma “casa de recursos”, matar charadas e discutir literatura com seus mestres e protetores, Clemente e Samuel. Quaderna sabe que é apenas “...um Poeta covarde, um Decifrador pacífico de charadas, um ex-seminarista e escrivão de gabinete.” Durante toda a juventude ele teve uma inveja ardente dos grandes cavaleiros medievais e dos grandes cangaceiros sertanejos, homens destemidos que montavam a cavalo e enfrentavam batalhas. Ele sabe que não tem esse estofo, essa têmpera, mas se consola pensando que, bem ou mal, é descendente de um assassino, de um fanático que sonhou com um Reino Encantado e sacrificou dezenas de pessoas, entre elas mulheres e crianças, na crença de que o sangue das vítimas desencantaria aquelas pedras.

Será que isto basta para tornar Quaderna um nobre? Quem o consola é seu mestre, o Professor Clemente. Diz Quaderna, no Folheto 4: “Quanto ao Professor Clemente, provou-me ele, um dia, com exemplos tirados da ´História da Civilização´, de Oliveira Lima, que todas as famílias reais do mundo são compostas de criminosos, ladrões de cavalo e assassinos, de modo que a minha não era, absolutamente, uma exceção.”

E mais adiante, no Folheto 65: “Nessas questões de linhagem real, Sr. Corregedor, essas coisas pejorativas não têm a menor importância! Filipe, o Belo, da França, falsificava dinheiro, motivo pelo qual passou à História com o nome comprido mas bonito de Filipe, O Belo, O Moedeiro Falso! Ora, eu pensei assim: Se esse Rei da França falsificava dinheiro, que é que tem que meus antepassados, Reis do Povo Brasileiro, degolassem mulheres, meninos e cachorros? Crime por crime, os da minha família foram muito menos chinfrins, porque degolar pessoas é muito mais monárquico do que passar dinheiro falso!”

Quaderna sonha em ser Rei, mas não porque o autor do livro seja monarquista. Ariano Suassuna trata a Monarquia, em seu romance, como o típico sonho de grandeza dos pequenos. Quaderna é um personagem moralmente pequeno em suas ambições de ser Rei para se locupletar: “Fidalguia sem tenças, bolsas, comendas e estipêndios, não tem graça nenhuma!” Mas é grande, sem o saber, em seu sonho de Poeta, em sua percepção luminosa da tragédia que é o confronto entre o Homem e a Onça do Mundo.

0565) “Os Incríveis” (9.1.2005)



Assisti o desenho animado Os Incríveis, que recomendo a quem quer que tenha gostado de Toy Story e da série Pequenos espiões de Roberto Rodríguez, com Antonio Banderas. É uma mistura dos dois. Super-heróis correspondem ao perfil unidimensional da cultura de massas. Cada um é identificável por um superpoder: Fulano incendeia, Sicrano congela, Beltrano é super-veloz, Fulano tem visão de raio-X.... Fáceis de identificar e de catalogar, mais fáceis ainda de inventar.

Os Incríveis é para a galera de 8 ou 10 anos. Para a galera de 12 ou 15 anos, tem a série X-Men, que pega os mesmos personagens mas já projeta neles uma dose mais adolescente de violência, dramas psicológicos, um certo erotismo. Uma experiência recente e curiosa com esses personagens da Marvel Comics é a série em quadrinhos 1602, escrita por Neil Gaiman, mostrando o aparecimento de mutantes equivalentes aos X-Men, com os mesmos superpoderes, na Inglaterra elizabetana.

O que me levou a matutar: existem histórias de heróis com superpoderes escritas para adultos? Superpoderes físicos e mentais equivalentes aos dos X-Men? O que me vem logo à mente são clássicos da ficção científica como O Homem Invisível de H. G. Wells, ou o magnífico romance de Robert Silverberg sobre um telepata, Uma pequena morte (Dying Inside, Editora 34). Mas são, afinal de contas, histórias de ficção científica, onde os autores estão trabalhando dentro dos limites do gênero. Mesmo sendo grandes escritores, como é o caso, trabalham com um olho no texto e outro no contexto, nas regras não-escritas do gênero.

Na literatura fora das fronteiras de gêneros, encontram-se excelentes histórias de super-heróis. Lembro o formidável Grenouille criado por Patrick Suskind em O Perfume (Ed. Record), o sujeito que tinha o olfato mais sensível do mundo, capaz de distinguir milhões de cheiros a quilômetros de distância. Há O Passa-Paredes de Marcel Aymé, um sujeito capaz de atravessar paredes sólidas. Não sei se posso incluir nesta lista o protagonista de O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon, um sujeito cujos orgasmos são tão intensos que atraem bombas V-2 e mísseis para o local onde ocorrem. Há o protagonista de Fermata, de Nicholson Baker (Cia. Das Letras): um sujeito capaz de imobilizar o tempo, deixando as pessoas “congeladas” como estátuas, situação da qual ele se serve para, digamos, divertir-se inocentemente com as senhoritas à disposição de suas fantasias. Há Funes, o Memorioso de Jorge Luís Borges, o ujeito que tem memória total e é capaz de recordar tudo que viu, sentiu e pensou em cada segundo de sua existência.

Pessoas com super-poderes fazem parte de nossas fantasias e de nossa cultura. O cinema e os quadrinhos geralmente se concentram nas possibilidades de espetáculo e ação física que sua condição acarreta. A literatura explora sua carga mítica, suas fraturas psíquicas, suas inesgotáveis conexões simbólicas.

0564) O ator José Dumont (8.1.2005)



Em João Pessoa está acontecendo uma retrospectiva da carreira de José Dumont. Quem me dera poder ver essa Mostra, cujos títulos ainda nem sei quais são. Por um lado, para rever os trabalhos do ator; por outro, porque é meio difícil você ver Dumont trabalhando num filme ruim. Ele tem, no cinema brasileiro, a glória meio ingrata de ser considerado “o nordestino típico”, assim como Antonio Pitanga e Milton Gonçalves foram por muito tempo “o negro típico”. Dumont tem uma espécie de estigma, segundo o qual ele só poderia interpretar personagens nordestinos, pobres, paus-de-arara.

Dizem que Orson Welles escolheu Anthony Perkins para o papel de Joseph K. em O Processo porque ele se parecia com Kafka. (Aliás, se olhar bem para as fotos dele, Kafka tinha uma cara de cearense danada.) Isto pode até ser compreensível quando se trata de filmes sobre personagens históricos cujas feições são conhecidas e marcantes. Nicole Kidman teve que inventar um nariz novo para fazer Virginia Woolf. Anthony Hopkins fez das tripas coração para ficar parecido com Nixon. Will Smith deve ter mandado bater muito bombo em terreiro para baixar o espírito de Muhammad Ali.

Ainda assim, essa história de papéis serem conferidos devido a semelhança física, ou “plausibilidade facial”, sempre me pareceu esquisita. Por que motivo um ator com o tipo físico de Dumont não poderia interpretar, digamos, um banqueiro, ou um ministro de Estado, ou um xeique saudita, ou um intelectual? Aliás, poucos atores seriam tão indicados para este último tipo, porque Dumont possui uma tensão concentrada de quem está pensando com toda força, o tempo todo, sem parar. Seus gestos tensos, seus olhos intensos, sua verbalização fluente e aparentemente incontrolável, tudo isto sugere um indivíduo com a mente em ebulição. É diferente de escalar certos atores globais de colete e cachimbo, manuseando um livro de Freud, e citando filósofos europeus.

Falei na verbalização de Dumont, e é notório no mundo do cinema o fato de que ele é um ator que traz material para o personagem, pensa o personagem, cria junto. Sua capacidade para o improviso já era conhecida desde O Homem que Virou Suco até Gaijin, e voltou a ser lembrada pela crítica no recente (e ótimo) Narradores de Javé. E quem no cinema brasileiro já interpretou o delírio intelectual, o delírio de uma mente possuída por uma idéia científica, com a intensidade impressa por Dumont no cientista louco de Kenoma, da mesma Eliane Caffé?

O rosto, o corpo, os olhos e a voz de Dumont são a cara do Nordeste, e não vejo nenhum papel, nordestino ou universal, que ele não pudesse interpretar. Se eu um dia filmasse o Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna seria ele minha primeira opção para o papel de Quaderna. Ali está o Fogo: a intensidade quase assassina de um sonho impossível. E também o Riso: o que Suassuna chama “o desvio obsceno” e “a galhofa demoníaca”.