terça-feira, 9 de setembro de 2008

0540) O socialismo digital (11.12.2004)



Como todo universitário brasileiro da década de 1970, passei muitas noites com o nariz enfiado em manuais de marxismo. Naquele tempo, a ditadura cometia barbaridades contra comunistas e militantes de esquerda em geral. Simpatizar com essa turma era um imperativo moral até mesmo para sujeitos como eu, incapazes não só de pegar em armas contra o regime, mas até de acordar cedo para derrubá-lo. Em seu poema “A Torre sem Degraus”, Carlos Drummond fala de pessoas decididas a mudar o mundo, desde que para isto não seja preciso mover uma palha. Era o meu caso.

Sei que há uma dúzia de marxistas que lêem esta coluna, portanto, companheiros, corrijam-me se eu estiver errado. Um dos grandes problemas do Socialismo foi que uma revolução socialista num país atrasado teria como efeito inicial “socializar a miséria”, dividir o pouco entre os muitos. O Socialismo em País Pobre teria uma distribuição de riquezas justa, mas as riquezas seriam poucas, devido ao pouco desenvolvimento dos meios de produção. Esta era, aliás, a razão por que Karl Marx duvidava que o comunismo desse certo num país agrário e retrógrado como a Rússia – como aliás não deu.

O Socialismo teria que brotar, idealmente, num país de capitalismo avançado, um país onde a tecnologia, a ciência, os meios de produção material pudessem suprir as necessidades de toda a população, se fossem socializados. Inglaterra ou Alemanha tinham industrialização sofisticada, e relações de produção ainda arcaicas, por haver uma classe que ficava com toda a riqueza em detrimento das outras. Seria necessário, portanto, uma revolução para fazer com que toda essa evolução técnica tivesse seus benefícios voltados não apenas para um pequeno grupo, mas para toda a população.

Desculpem meu simplismo, mas nunca discuti marxismo com Fernando Henrique nem com Luiz Inácio, meu marxismo foi aprendido em mesa de bar, conversando com futuros sociólogos, poetas, diretores de teatro, músicos, estudantes de engenharia e jornalistas. Mas vejam como o mundo digital de hoje (internet, queima de CDs, pirataria, Napster, MP3, downloads gratuitos, filme baixado em banda larga, códigos abertos, “Creative Commons”, etc.) é uma Revolução Socialista em processo. Distorções ocorrem (a pirataria de CDs, em primeiríssimo lugar), mas é porque ainda estamos em plena vigência da lei-da-selva capitalista, onde o aparato high-tech ainda está voltado para o enriquecimento de grupinhos de espertalhões sem escrúpulos.

A revolução digital, contudo, está a caminho de uma Estação Finlândia que já desponta no horizonte. É a reprodução em série, a mídia independente, as redes de troca, o conceito de “copyleft”, todo o fervilhar de atividades subterrâneas e informais criado nos quartos-dos-fundos, nos laptops, nos PCs canibalizados de uma galera que forçou tanto o crescimento dos meios de produção que acabou explodindo as relações produtivas. E agora não tem mais volta, babau Tia Chica.

0539) Lixo (10.12.2004)


(Lixo em Nápoles)

O que é lixo? Em Tóquio, por exemplo, lixo pode ser um computador Pentium III de 500 Mhz, com disco rígido de 80 Gb, igual a este onde todos os dias venho tomar minha vacina contra o Tédio. O japonês compra uma máquina com o dobro da capacidade e aí pega o computador velho e coloca no corredor do prédio, para ser recolhido pelo porteiro. É lixo para o Sr. Nakayama, que acabou de fazer a troca, mas deixa de ser lixo no momento em que é recolhido pelo porteiro, um rapaz de Guaratinguetá que está no Japão fazendo seu pé de meia, e até então não tinha tido tempo de escolher um PCzinho para o filho jogar The Sims.

O que é lixo para um deixa de sê-lo, magicamente, quando cai nas mãos de outro. Uma sociedade inteligente é a que prevê e administra as possibilidades dessa reciclagem. Quando tomo meu café da manhã, todos os dias, produzo coisas de que não preciso mais: pó de café, cascas de ovos, bagaço de laranja. Tudo isso vai para o lixo, mas não tinha de ser assim. Quando eu era pequeno, lá em casa não se jogava fora uma casca de ovo. Todas eram lavadas, guardadas, torradas no forno, pulverizadas, e guardadas num saleiro, em forma de um pozinho branco muito fino, composto de puro cálcio, que era polvilhado no prato do almoço e até hoje me garante estes ossos fortes que nunca foram quebrados. Algo me diz que a grande maioria das coisas que vai para a lixeirinha da pia poderia ter o mesmo destino.

Falei acima que a sociedade deveria prever e administrar essa reciclagem, mas prefiro reformular esta proposta. Dizer assim dá a impressão (tão cara ao pessoal da direita e da esquerda) de que reciclar lixo é tarefa do governo, de que deveria haver funcionários públicos encarregados de toda manhã tocar à nossa campainha para pegar nosso lixo reciclável, conduzi-lo para uma indústria estatal, etc. etc. Na verdade, acho que deve caber ao governo apenas a criação desses centros e a educação do povo (minha e sua, caro leitor) para aprender a separar, guardar e encaminhar. Quem tem de se organizar para fazer isso são as pessoas, as famílias, os condomínios, os bairros, as vizinhanças. Se esperar por Governo, o mundo cai de podre.

Lixo é tudo aquilo para o qual ninguém consegue descobrir uma nova utilização. Enquanto tiver um cara esperto capaz de olhar para aquilo (pó de serra, pilha descarregada, quenga de coco, plástico de CD, prego enferrujado) e descobrir uma nova utilização, nada está perdido para sempre. As escolas poderiam dar o exemplo, reciclando, com a participação dos alunos, tudo que é utilizado em suas cantinas e salas de aula. Assim como o planejamento urbano e a construção civil são obrigados hoje a prever o acesso e a locomoção de portadores de deficiência, deveriam prever também instalações de recolha e distribuição de lixo reciclável. Não é tão difícil. No Brasil, por exemplo, basta promulgar uma Lei e convencer a Rede Globo a encampar a idéia.

0538) O Código Da Vinci (9.12.2004)



Não, leitor, sinto muito mas não li esse thriller policial de Dan Brown, que está vendendo mais do que coca-cola no Saara. Mede-se o sucesso de um livro pela quantidade de outros livros que tentam pegar carona nele, não é mesmo? Tem horas que eu penso que endoideci, mas já temos nas prateleiras de nossas livrarias títulos como Revelando o Código da Vinci (Martin Lunn), Quebrando o Código Da Vinci (Darrell L. Bock & Heiko Bock), Decodificando Da Vinci (Amy Welborn), Decifrando o Código Da Vinci (Simon Cox), e A Fraude do Código Da Vinci (Erwin Lutzer). É mole ou quer mais?

Quando o livro começou a fazer sucesso, no ano passado, fui numa dessas livrarias online (tipo Amazon ou Barnes & Noble) que oferecem de graça o primeiro capítulo, baixei, e li. Confesso que não me entusiasmei muito. Eu esperava um thriller cheio de enigmas e muito bem escrito, mais ou menos como O Clube Dumas de Arturo Pérez-Reverte. O primeiro capítulo que li me lembrou a “pulp fiction” dos anos 30: uma narrativa melodramática, estilo pedestre, e havia um tal dum telefonema com uma voz arquejante do outro lado recitando uma porção de lugares-comuns... “Pulp-fiction por pulp-fiction,” pensei, “acho que vou reler Fu-Manchu ou Fantomas.”

Pelos comentários que vi, Dan Brown explora a teoria conspiratória segundo a qual Jesus Cristo teria sobrevivido à cruz, casado com Madalena e deixado uma linhagem de descendentes. Este segredo teria sido guardado durante séculos pelos Cavaleiros Templários, até que estes entraram em rota de colisão com as monarquias européias, que temiam o aparecimento de um sujeito qualquer dizendo: “Eu sou o tatataraneto de Jesus, e quero ser coroado rei da França...” Pense num problema diplomático! Pegaram os Templários, queimaram seus arquivos e por via das dúvidas queimaram todos eles também.

Toda essa história está milimetrada num livro-reportagem (este, sim, interessantíssimo) de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, O Santo Graal e a Linhagem Sagrada, já publicado no Brasil. Encontrei este livro por acaso, há quinze anos, num sebo de Lisboa, e como tinha passado a tarde inteira percorrendo as criptas da Torre de Belém e os corredores do Mosteiro dos Jerônimos, pareceu-me muito plausível essa teoria mirabolante sobre mensagens cifradas, tesouros enterrados, heranças misteriosas, e sociedades secretas.

Vi na imprensa que os autores do “Santo Graal” estão processando Dan Brown, o que é uma bobagem. Os fatos da reportagem são agora públicos, e qualquer um teria o direito de reutilizá-los numa obra de ficção. Daqui a pouco vai ter escritor brasileiro querendo seguir o mesmo filão. Que besteira. Bem que podíamos ter “thrillers” brasileiros de mistério histórico, falando do retorno de Dom Sebastião, tesouros ocultos nas ruínas de Canudos, uma máquina-do-Tempo deixada incompleta pelos holandeses em Pernambuco, ou a guerra de xamãs que deixou em ruínas as Sete Cidades do Piauí.

0537) Os 14 sintomas do fascismo (8.12.2004)




(desenho de Raoul Vaneigem)

Encontrei meio por acaso uma página com o resumo da pesquisa feita pelo Dr. Lawrence Britt (que não faço idéia de quem seja) sobre vários regimes fascistas: Hitler, Mussolini, Franco, Suharto (da Indonésia) e algumas ditaduras latino-americanas. Britt fez um balanço e descobriu que todos estes regimes tinham catorze traços em comum. Acho que vale a pena ficar de olho neles, porque é de um em um que costumam vir se instalando no país da gente.

1) Nacionalismo constante e intenso, com profusa utilização de bandeiras, símbolos, hinos, etc. 

2) Desprezo pelo reconhecimento dos direitos humanos, e uma aceitação da tortura, prisão arbitrária, etc., como um “mal necessário” para perseguir os inimigos da democracia. 

3) Denúncia de inimigos e de bodes expiatórios para promover a uniformidade ideológica da população, geralmente mobilizando-a contra um país vizinho ou contra uma minoria étnica, religiosa, etc. 

4) Supremacia militar: mesmo quando o país tem problemas sociais da maior urgência, grande parte da verba é destinada para os salários e investimentos da área militar. 

5) Preconceito sexual, geralmente na direção de um profundo conservadorismo; o machismo predomina, e há fortes restrições contra o divórcio, o aborto e o homossexualismo.

6) Controle dos meios de comunicação, seja através da censura propriamente dita, seja através de políticas de concessões e financiamento, ou da utilização de personalidades populares da mídia como propagandistas do regime. 

7) Obsessão com a segurança nacional, usando o medo como justificativa para políticas internas e externas. 

8) Mistura entre Governo e Religião: a religião mais popular do país é usada como fator de mobilização do povo, e os líderes usam retórica e valores pretensamente religiosos para justificar suas atitudes. 

9) As grandes corporações são protegidas, até porque o governo é elevado ao poder através da aristocracia empresarial e industrial, para defender-lhe os interesses. 

10) A organização dos trabalhadores é sabotada, por ser a única força capaz de se opor a um governo fascista.

11) Desprezo pelos intelectuais e artistas; regimes fascistas tendem a promover ou tolerar a hostilidade aberta à cultura universitária e acadêmica, e a impedir a livre expressão através das artes e das letras. 

12) Obsessão com crime e castigo. Nas nações fascistas, prender e punir tornam-se atividades constantes, e a população é levada a tolerar abusos nesta área em nome do patriotismo. 

13) Política de apadrinhamento e corrupção explícitas: os países fascistas favorecem a proliferação de grupos de amigos que se nomeiam uns aos outros para cargos importantes, e se protegem mutuamente enquanto saqueiam as riquezas da nação. 

14) Eleições fraudulentas, perseguição e mesmo assassinato de candidatos de oposição; legislação que favorece a perpetuação de grupos no poder; uso do poder judiciário para manipular e controlar as eleições.

Depois não digam que eu não avisei.