quarta-feira, 13 de agosto de 2008

0511) Blade Runner (7.11.2004)



Andei revendo a “versão do diretor” de Blade Runner, o filme com que Ridley Scott em 1982 deu uma balançada nas estruturas do cinema de ficção científica.

Confesso que não vi muita diferença entre as duas versões, e acho uma grande besteira essa moda, se não me engano inaugurada com Contatos Imediatos do Terceiro Grau de Spielberg, o qual nos convenceu a pagar um novo ingresso anos depois só para ver o interior da nave na cena final.

No caso de Blade Runner, foi pior: pagamos novo ingresso e deixamos de ouvir a narração em “off” de Harrison Ford, a qual era detestada pelo ator e pelo diretor, mas foi imposta pelos produtores que (como sempre ) achavam que sem ela o público, que é burro, não entenderia a história.

Neste caso, dei razão aos produtores. Eu entenderia a história de qualquer maneira (já li 257 histórias iguais àquela), mas é o tom da voz, lembrando os romances policiais de Chandler, que dava ao filme original um charme que o de agora não tem.

Um detalhe interessante (e controvertido) do filme é a origem do seu título. O filme se baseia num romance de Philip K. Dick, Do Androids Dream of Electric Sheep? (“Será que os Andróides Sonham com Carneiros Elétricos?”), mas está na cara que Hollywood jamais usaria um título assim.

O roteirista Hampton Fancher lembrou-se então de um livro de Alan E. Nourse, um médico que escreveu numerosas obras de FC onde a Medicina tem papel importante. Em 1974 ele publicou The Bladerunner, romance ambientado num futuro próximo em que a Terra está com super-população e a medicina está sujeita a camelôs, traficantes, falsificadores, etc. Os “bladerunners” são, literalmente “contrabandistas de lâminas”.

Acontece que o escritor William Burroughs (o autor de Almoço Nu, Junky e outros clássicos da literatura beat) também gostou do termo e o utilizou num livreto de 1979, Blade Runner – A Movie, que apesar do título nunca foi filmado.

Ridley Scott mandou comprar os direitos de utilização do título, mas não usou nada dos livros de Nourse e de Burroughs. No filme, “blade runner” é o nome que se dá aos policiais encarregados de prender ou exterminar os replicantes, ou andróides, que se rebelam, mais ou menos como os capitães-do-mato faziam com os escravos fugidos aqui no Brasil. Alguns acham que o termo guarda uma semelhança eufônica com “bounty hunter”, caçador de recompensas.

Ao pé da letra, no entanto, o termo significa “aquele que corre por cima de uma lâmina”, ou que (no verso de Lula Queiroga) “tem que saber andar num chão de navalha”.

O que é uma evocação de um episódio da Demanda do Santo Graal: os cavaleiros da Távola Redonda chegam a um abismo que só pode ser atravessado por sobre o gume de uma lâmina imensa e afiadíssima. Os cavaleiros precisam deitar-se sobre esse gume e arrastar-se ao longo dele, cortando-se todos, até chegar ao lado oposto. Um belo simbolismo para o processo de auto-conhecimento, que não se dá sem sangue e cicatrizes.







0510) O autista e o amor (6.11.2004)




(Greg Egan, Klein's Quartic Curve, http://math.ucr.edu/home/baez/KleinDual.gif)

Uma característica comum a vários tipos de autismo é a incapacidade de perceber subtextos, segundas intenções. Jovens ou adultos autistas têm a tendência de interpretar ao pé da letra o que ouvem; não conseguem entender uma ironia. 

Um autista vê um sujeito suado, carregando nas costas uma pedra de 50 quilos, e pergunta: “Como vai?”. “Estou ótimo,” diz o outro, “nunca me senti melhor em minha vida.” E o autista vai embora satisfeito, acreditando piamente no que ouviu. 

Um autista não consegue jogar pôquer direito. Ele absorve com rapidez as regras do jogo, porque tem sempre uma habilidade espantosa para números, séries, etc. Mas não entende o que é um blefe.

Vai daí que muitos autistas não têm senso de humor, porque o senso de humor depende muitas vezes de um duplo sentido, depende da nossa capacidade de interpretar uma frase ou uma situação, e, uma fração de segundo depois, perceber que no contexto específico daquela historinha aquela frase ou situação admite uma interpretação completamente diferente, que inverte por completo o significado da cena. O riso é uma descarga nervosa causada pela surpresa diante dessa reviravolta mental e do contraste entre as duas interpretações. O autista é incapaz de perceber essa duplicidade de leituras, e, se a percebe, isto o deixa indiferente. Ele nasce geneticamente vacinado contra a ironia, o sarcasmo, a insinuação, a mentira diplomática.

Greg Egan imagina em seu romance Distress (1995) uma organização intitulada Voluntary Autists Organization. É uma entidade de autistas que querem ter o direito de ser como são, porque estão satisfeitos assim. As pessoas “normais” (dizem eles) têm uma capacidade inata para observar as outras e imaginar o que estão pensando a partir de seus gestos, palavras, etc. “Modelamos” em nossa mente, sem parar, a mente das pessoas que nos cercam, e nos comportamos de acordo com isto. Ao longo da evolução humana, essa capacidade se funde ao comportamento afetivo instintivo dos mamíferos e ao impulso reprodutivo, e dá origem ao sentimento chamado “empatia afetivo-sexual”, ou “amor”.

No livro de Egan, o autismo é atribuído a uma lesão cerebral que anula essa capacidade para se identificar emocionalmente com outras pessoas. E os indivíduos que têm uma lesão parcial querem que a Constituição lhes dê o direito de aumentá-la, cancelando por completo sua capacidade para a empatia. Eles invocam o mesmo direito alegado pelos transexuais: “Quero ter o direito de ser como sou, por inteiro.” Identificar-se com outro ser humano (alegam eles) é uma ilusão, uma mentira. Deveríamos nos comportar de acordo com regras e valores morais, não com uma ilusão de afeto mútuo. A noção de empatia, de intimidade psíquica com outro ser humano, é uma premissa falsa. E aí eu pergunto: se um transexual tem o direito de mudar de sexo, um semi-autista tem o direito de amputar suas próprias emoções, e viver em paz, sem ser obrigado a fazer algo que considera uma mentira?