quinta-feira, 8 de maio de 2008

0388) “Páginas de Sombra” (17.6.2004)



Fico meio constrangido em usar este espaço, que me parece de interesse público, para fazer propaganda dos meus próprios produtos. Mas como é por uma causa nobre, a da Literatura Brasileira, resolvo engolir os escrúpulos e seguir em frente. Comunico aos meus pacientes leitores que hoje, a partir das 20 horas, estarei em João Pessoa, no Parahyba Café (Usina Cultural da Saelpa, fone 222-4198), autografando meu livro Páginas de Sombra, uma antologia do conto fantástico brasileiro, publicada pela editora Casa da Palavra, do Rio. Antologias são livros com um conceito autoral meio impreciso. Tenho aqui em casa algumas onde o antologista aparece como autor mesmo sem ter escrito uma linha sequer. Admito que ele, tendo escolhido os textos do livro, tenha direito à autoria: pela idéia, pela compilação. É sua a responsabilidade por aquele cardápio de textos que provavelmente nunca tinham sido agrupados antes.

Isto talvez já bastasse, mas por via das dúvidas escrevi apresentações individuais para todos os 16 contos do livro (de autores como Machado de Assis, Rubens Figueiredo, Murilo Rubião, Carlos Drummond, Lygia Fagundes Telles, etc.); e um prefácio de 12 páginas onde examino aspectos da literatura fantástica. Em entrevista recente a “O Norte”, argumentei que essa literatura possibilita ao autor uma riqueza maior de temas do que o repertório do Realismo. O Realismo vai até um certo ponto; o Fantástico vai mais além. Foi preciso, talvez, surgir o chamado Realismo Mágico latino-americano para muita gente perceber que o Fantástico não é um cancelamento do Realismo, e sim uma expansão deste. O Fantástico inclui tudo que existe no Realismo... e muito mais.

Já falei sobre Páginas de Sombra nesta coluna (“O fantástico”, 1.7.2003). Tentei com este livro repetir o esforço feito em 1959 por Jeronymo Monteiro, que organizou para a Editora Civilização Brasileira a antologia O conto fantástico. Tentei fugir ao repertório escolhido pelo mestre Jeronymo, mas não resisti e incluí dois contos selecionados por ele: “Os olhos que comiam carne” de Humberto de Campos e “A gargalhada” de Orígenes Lessa. Aliás, acho que um bom complemento à leitura do meu livro será Contos fantásticos do século XIX, de Ítalo Calvino, antologia lançada há pouco pela Companhia das Letras. (Pronto – fiz uma propagandazinha do meu principal concorrente, para apaziguar a minha angústia ética).

Em todo caso, creio que o meu livro tem um aspecto que falta a todos os outros: as impressionantes ilustrações de Romero Cavalcanti. Romero (paraibano radicado no Rio, como eu) fêz no computador um trabalho semelhante ao que Max Ernst fêz com tesoura e cola, na década de 1930. Recolheu aquelas antigas gravuras em metal e madeira que ilustravam os livros do século 19, recortou-as, recombinou-as em colagens surrealistas e inquietantes que, tão bem quanto os textos, nos comunicam o “sentimento do fantástico”.

0387) O dia de Joyce (16.6.2004)




(foto de James Joyce, por Man Ray)

O dia 16 de junho é conhecido no mundo inteiro como o “Bloomsday” (ver “O Bloomsday”, 15.6.2003). É o dia, na vida de Leopold Bloom, em que transcorre toda a ação do romance Ulisses de James Joyce, e foi escolhido pelo escritor por ser o dia do seu primeiro encontro amoroso com Nora Barnacle, que viria a ser sua esposa. 

É comemorado no mundo inteiro, e este ano terá celebrações especiais por seu centenário, pois o encontro original entre Joyce e Nora foi em 1904.

James Joyce é um dos grandes equívocos do mundo da literatura, mesmo tendo sido um escritor de gênio. Não uso o termo “gênio” para dizer que ele era mais inteligente ou que escrevia melhor do que os demais, mas no sentido de que era um desses caras que parecem possessos, parecem possuídos por um espírito, por um gênio ou “djinn” oriental, por um orixá das letras. 

O gênio literário não é apenas o cara que escreve bem. É o que que sacrifica tudo – bem-estar, amor, família, dinheiro, saúde física, sanidade mental – para criar uma obra literária. O gênio, em geral, é aquele cara cuja obra gostaríamos de ter escrito, mas cuja vida não ousaríamos jamais viver.

Por que Joyce é um equívoco? Por muitas razões. 

Uma é a de se insistir nele como um modelo literário, um escritor a ser imitado, um sujeito que reinventou o romance e cujas descobertas precisam ser aprofundadas. Não é nada disso. Joyce foi um sujeito que afastou-se da avenida principal da literatura e abriu por conta própria um beco sem saída. Seu mérito foi criar um caminho só seu. Algumas de suas descobertas literárias podem ser usadas, com moderação. Usá-las em demasia resulta em pastiche, pelo caráter absolutamente pessoal que elas têm. 

A obra de Joyce é um retrato do microcosmo histórico, social e cultural de James Joyce, a um nível de profundidade como poucas vezes um escritor conseguiu. Tentar fazer o que ele fêz, do modo como o fêz, é não entender o espírito do seu gesto libertário. É desperdiçar o heroísmo suicida de seu exemplo: “seja você mesmo, até as últimas consequências”. Seja você. Não seja “James Joyce”.

O culto a Joyce é hoje quase uma religião literária. A editora Naxos Audiobooks acaba de lançar o Ulisses numa caixa com 22 CDs, lidos por Jim Norton e Marcella Riordan, com fotos e estudos. (O preço, para quem se dispuser, é de 149 dólares). 

Na esteira desta fama, surge outro equívoco: o marginal transformado em monstro sagrado; o rebelde erigido em modelo; o destruidor-de-regras que passa a servir de manual-de-instruções. 

Por outro lado, o excesso de interpretações eruditas de sua obra dá a impressão de ser ela uma arca-de-noé de erudição, quando é uma das obras mais intuitivas, menos cerebrais da literatura. Para visualizar quem foi Joyce, leiam os contos de Dublinenses e o romance Retrato do artista quando jovem. A leitura de Ulisses ou Finnegans Wake é um caminho-de-São-Tiago literário. Só vá se achar que a perna agüenta.




0386) Amigo é pressas coisas (15.6.2004)





(A Gang Selvagem com Sundance Kid (primeiro sentado, à esquerda) e Butch Cassidy (último sentado, à direita).



Dias atrás cometi uma blasfêmia, falando mal da Liberdade (“O fantasma da liberdade”, 27 de abril). Hoje, atacarei outra vaca sagrada: a Amizade. Tenho dezenas de amigos, gosto muito de todos, e espero não ofender nenhum deles ao afirmar que um dos maiores males do Brasil é a amizade. Este é um dos valores morais sobre os quais se alicerça a nossa cultura e esta maneira de ser que tanto encanta os estrangeiros, mas onde se apóia também toda a rede de corrupções, trambiques, maracutaias, negociatas, golpes, e todas as “tenebrosas transações” de que falava o poeta.

Vejam nos jornais, na TV. Está tudo lá, nos depoimentos, nos telefonemas grampeados, nos bilhetinhos, nos papos a meia-voz registrados pelas microcâmeras ocultas. “Aos amigos, tudo” – é o lema que impera nos corredores do Poder público e privado. 

Se aos políticos é vedada a nomeação de parentes para cargos públicos, este conceito deveria, talvez, ser ampliado para incluir também os amigos. Afinal, muitas vezes um político deixa de lado um irmão antipático ou um primo pouco confiável, e prefere instalar no ponto-chave da máquina estatal aquele companheirão dos velhos tempos, cuja amizade é à prova de fogo. 

(Se bem que nunca se sabe. Assim como se diz que a fidelidade feminina é solúvel no álcool, muitas lealdades masculinas não resistem ao peso dos zeros e dos cifrões.)

Os “vampiros” da Máfia do Sangue só fazem o que fazem porque estão cercados de amigos. Amigos às vezes honestos e bem intencionados, e são essas boas intenções que os perdem. “Ih, rapaz, o Lalau desta vez extrapolou... Mas não vou abandonar um amigo numa hora como essa! Vou destruir as provas e jurar na Bíblia que não sei de nada.”

Num ensaio de 1946 (“Nosso pobre individualismo”, em Outras inquisições), Jorge Luís Borges comenta o abismo ético existente entre a moral anglo-saxônica proposta pelo cinema americano e a ética do compadrismo cultivada pelos argentinos. Diz ele que o argentino só acredita em relações pessoais. Como o Estado é uma entidade abstrata, ele não crê em sua existência, e não acha que seja um crime roubar dinheiro público. E exemplifica: 

“Os filmes elaborados em Hollywood propõem repetidamente à nossa admiração o caso de um homem (geralmente um jornalista) que conquista a amizade de um criminoso para entregá-lo depois à Polícia. O argentino, para quem a amizade é uma paixão e a Polícia uma máfia, sente que este herói é um incompreensível canalha.”


Este exemplo cristalino comprova minha tese sobre a brasilidade dos argentinos, ou a nossa própria argentinidade. Achamo-nos devedores de favores e lealdade aos nossos amigos, não a essa abstração chamada Brasil. Nosso “contrato social” é no interior de um clã. De uma família ampliada; de uma tribo; de um clube de pessoas unidas por projetos coletivos de ascensão social e de desfrute das boas coisas da vida. O navio é este convés onde tomamos drinques ao sol; o resto pode afundar, tamos nem aí.