terça-feira, 13 de maio de 2025

5178) O detetive Eduardo Coutinho (13.5.2025)





O filme Eduardo Coutinho, 7 de outubro está em exibição no streaming do SESC Digital, plataforma gratuita que sempre tem muitos clássicos do século passado ao lado de produções recentes. 
 
Este registro de 2015 tem direção de Carlos Nader, fotografia de Jacques Cheuiche, montagem de Jordana Berg. Nele, alguns jovens realizadores e técnicos se reuniram para entrevistar “o maior entrevistador do cinema brasileiro”, epíteto que logo nos primeiros momentos ele descarta com um dar-de-ombros e um olhar de “mas isso de novo?”.  
 
Coutinho pede licença para fumar, e também para dizer palavrões. Diz ele que gosta de falar o caralho a quatro. E começa a se perguntar de onde terá vindo essa expressão, que é aparentada com “o diabo a quatro” (título brasileiro de uma comédia dos Irmãos Marx). 
 
Certamente (agora sou eu pensando) não vem da folha de papel A-4, que é mais moderna. Talvez venha do jogo do bicho, que tem um esquema quaternário de 25 bichos multiplicados por 4 e correspondendo a 100 números. O Avestruz é o 1. Penso eu que se o considerarmos “a quatro” ele preenche os números 01, 02, 03 e 04.  A Águia (2), por sua vez preenche o 05, 06, 07 e 08. E isso vai até o último, a Vaca, que é 25, e considerada “a quatro” preencheria as dezenas 97, 98, 99 e 00 (cem). 
 
O caralho (ou qualquer coisa) “a quatro” seria então a dezena correspondente; algo multiplicado, potencializado. Estarei viajando? Pode ser. 
 
Coutinho era um emérito falador de palavrão. O palavrão – não como ofensa, mas como desabafo respiratório. A certa altura do filme ele diz que se recebesse a melhor notícia e a pior notícia as únicas coisas que seria capaz de dizer seriam “Puta que pariu” e “Ai meu Deus”. 
 
Coutinho e Nader conversam sobre um dos princípios do cinema dele, expresso na fórmula (que Coutinho sugere já fazer parte do jargão dos documentaristas) de que o que se busca não é “a filmagem da verdade, e sim a verdade da filmagem”. Diretor, câmera e equipe não estão ali para registrar, invisivelmente, objetivamente, neutramente, a vida daquelas pessoas. Estão gerando um fato (o encontro entre equipe + entrevistados) e registrando a fagulha que daí resulta. A equipe também é personagem. 



 
Coutinho dá exemplos de filmes seus como Edifício Master (2002) e O Fim e o Princípio (2005), produtos de escolhas quase aleatórias. “Filmar assim é como cavar petróleo”, diz Coutinho; “quando a gente começa a cavar aqui não está cavando em outro lugar.”  A escolha do Edifício Master e da cidade de São João do Rio do Peixe para esses dois filmes foi a escolha de um pacote fechado. Um salto no escuro, mas um escuro escolhido. Escolhe-se onde se vai saltar. O resto vem como consequência de ter caído justamente ali. 
 
Ele compara essas escolhas com uma “pena de morte” e “uma prisão”, advertindo que quando o documentarista escolhe essa prisão (“Vou filmar em São João do Rio do Peixe”) isso lhe dá uma liberdade absoluta. “O [momento] presente da filmagem é a única coisa que me interessa”, afirma ele, dizendo que prefere isso do que receber “dez milhões de dólares e nenhuma prisão”. 
 
E é um encontro sujeito a tudo, principalmente ao fracasso. “Ou acontece em meia hora, ou não acontece, não adianta ficar três horas”. 
 
A “prisão” do documentarista é, em linguagem literária, a “contrainte”, termo francês para qualquer restrição arbitrariamente escolhida e auto-imposta. É quando o escritor diz algo como: “Vou escrever um poema onde cada linha tem que ter uma letra a mais que a linha anterior... vou escrever um romance onde todos os personagens têm o mesmo nome e o leitor que se vire... vou escrever uma peça de teatro onde todas as palavras serão proparoxítonas...”  
 
Preso e emparedado no plano horizontal de tais escolhas, só resta ao artista olhar para o alto e ver que o céu é o limite. 
 
“Tudo é um mistério!  Nenhuma questão está resolvida, está dada!  E eu acho isso maravilhoso. Tudo está pra ser descoberto.” 




Entrevistar pessoas, para Coutinho, é ligar a câmera, deixá-la parada e registrar com aquilo uma pessoa real que fala, “um corpo que fala”, diz ele, sem a preocupação de fazer “planos de cobertura”, variação entre “frente e perfil”, o beabá dos entrevistadores e dos diretores de fotografia. 
 
Ele exemplifica com trechos de Santo Forte (1999) e diz ter se arrependido de semanas após a filmagem ter colocado “inserts”, imagens soltas que servem de ilustração mas não pertencem ao ambiente e ao momento da entrevista. 
 
Entrando no clima randômico que Coutinho parece tanto apreciar, o diretor Nader lhe pede: “Fala um número”, e ele responde com admirável presteza: “1.420”, provocando risadas de todos. Era um sorteio: ele se corrige para “7”, e o sorteado é um trecho de Edifício Master, a entrevista da jovem Alessandra. 
 
O filme mostra em paralelo trecho de O Fim e o Princípio em que um homem idoso, à janela, lamenta o fim da linguagem verdadeira, que se diluiu em lugar comum, e batendo na janela diz que quando Jesus criou o mundo janela era janela. “A palavra agora não é mais a coisa,” lamenta Coutinho, lembrando o conceito de “linguagem adâmica” de Walter Benjamin, a linguagem pré-divisão de tudo. 
 
E vem um trecho do Edifício Master com três jovens, aspirantes a banda de rock, em que dois cantam e um deles limita-se a aparecer, silencioso, impassível. O vocalista explica: “a nossa intenção com ele é que ele seja uma mensagem visual,  ele interpreta corporalmente o que a gente quer passar com a música... Então... se ele falar perde o sentido”. 
 
Cutinho volta a lembrar Walter Benjamin: “Todo passado contado é mais intenso que o passado vivido. Isso é uma verdade absoluta. Não há paixão, não há coisa que você tenha vivido que seja tão forte na vida real do que foi, do que vinte anos depois, contada. Não tem, não tem. É impossível.” 
 
“Eu tenho uma fascinação por tudo que é inacabado, por tudo que é impuro, por tudo que é imperfeito, que é precário... Por tudo que é resíduo, por tudo que é lixo, por tudo que é detrito... Eu sou apaixonado por esse tipo de coisa.“
 
Uma cena de Babilônia 2000 (2000): a mulher (negra, cabelo branco, bem curtinho, óculos) rememora que já trabalhou em boates famosas, conheceu Juscelino Kubitschek, e no final da entrevista confessa que a mãe engomava o terno do pai para que ele fosse namorar na Zona. “É o Caso do Vestido de Drummond,” comenta Coutinho. “Ela manda as filhas entrarem quando o marido volta bêbado: ‘vosso pai evém chegando’”. 



 
“Meus filmes veem o mundo do lado feliz, todo ao contrário do que eu sou. Por isso meus filmes são importantes pra mim.“ 
 
Coutinho conjetura que suas entrevistas funcionam devido a um elemento que ele não consegue definir com outra palavra senão “erótico”: a sensação de presença e proximidade de dois corpos, a “co-presença”, como ele diz. Cita (e mostra) uma imagem de O Fim e o Princípio, em que entrevistando D. Mariquinha, de 82 anos, a câmera em certo momento pega na margem direita um pedaço dos seus óculos. “O filme nos mostra juntos na mesma imagem”. É a proximidade entre os corpos, criando uma vibração erótica no sentido mais amplo da palavra. 
 
Um critério que ele alega ser importante é o de “justa distância”. “Eu não falo com alguém a dez metros de distância, mesmo que a imagem fique bonita”. “A pessoa fala uma coisa, mas porque eu estou lá. E porque eu estou lá se produz uma coisa, pelo fato de haver um interlocutor, e uma câmera. Pro bem e pro mal.”.“A necessidade de ser ouvido é uma das mais profundas, se não a mais profunda necessidade humana. Ser ouvido é ser legitimado, em sua mediocridade...”
 
O hábito de ler romances policiais me leva a comparar o estilo de entrevista de Eduardo Coutinho com o método investigativo de alguns detetives famosos, cujo melhor modelo é Hercule Poirot. O bom detetive sabe que todo mundo mente. Todo mundo esconde alguma coisa. Não é somente o assassino que está contando uma versão falsa dos acontecimentos. Cada um daqueles suspeitos está fornecendo uma versão distorcida da verdade: por medo; por insegurança; por mero esquecimento ou nervosismo; por interpretar erradamente algo que entreviu ou entreouviu; para esconder algo que não tem nada a ver com o crime; para acobertar outra pessoa... 
 
Hercule Poirot dedica seu tempo a longas conversas cheias de “cerca-lourenço”, de rodeios e despistes aparentemente sem objetivo, mas que têm o poder de extrair de cada suspeito uma porção de informações que o leitor vai registrando superficialmente. “Por quê que ele perguntou isso? Que importância tem essa informação?” 
 
Poirot consegue essa proximidade com o suspeito, em muitos casos, por ser uma figura aprentemente inofensiva: um homem de certa idade, meio janota, meio cabotino, mas muito educado e cortês... Ele se aproxima, faz um monte de perguntas irrelevantes, e o suspeito vai se soltando. E assim os fios da teia vão sendo tecidos. 
 
Coutinho não queria pegar criminosos. Queria flagrar cada pessoa no limiar de seus segredos, de suas confidências a que ninguém jamais deu ouvidos. De repente, bate à porta da pessoa aquele homem ríspido, de barbas brancas, acompanhado de câmeras e luzes. Um homem disposto a ouvir aquele velho contar como foi ao Inferno e voltou; ouvir a mocinha dizer que deixou de falar com o pai até que ele morreu de enfarte; ouvir aquela senhora humilde recordar como em outra vida viveu na Alemanha de Beethoven; ouvir como aquela outra disparou três vezes contra o ex-amante e o revólver falhou três vezes... 
 
“Tem uma coisa que... a pessoa que eu vou falar, que ela sabe... Não importa se é verdadeira. Tanto o que ela conta da vida, ou tanto o que ela pensa.  Mas tem uma coisa que eu tenho que estar ‘vazio’ pra que ela possa me dizer: eu sou assassino... Ela pode me dizer. Tem que dar a impressão de que ela pode falar isso, entende?
 



("Santo Forte")
 
 
 



2 comentários:

  1. Excelente texto. Acho que o "detetive" Coutinho tem a (des)vantagem de não saber qual crime a pessoa cometeu mas saber que ela é culpada. Aí suas entrevistas não são interrogatórios, pois ele não quer provar nada. Já os seus suspeitos, movidos pelo desejo de se provar inocentes, acabam se confessando culpados. Um gênio .

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  2. Lisandro, é tipo isso... Ele não sabe o que está procurando, mas os entrevistados sabem o que estão escondendo. E aí acabam entregando. :-)

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